sexta-feira, 11 de maio de 2018

Lembranças da mãe-rainha do lar


Chegou o momento que ela pretendia adiar para o resto da vida, mexer nos armários da mãe. Já tinha chorado a morte, entendido que isso acontece, reclamado com os deuses, estava pronta.
A casa era pequena, não tinha muitos pertences e ela deveria ser racional e se despedir de tudo, deixando que aqueles objetos, agora sem uso, pudessem ter algum tipo de utilidade para outra pessoa.
Começou pelo guarda-roupas. As coisas estavam em ordem, mania da mãe. Abriu as malas e colocou tudo ali, desde casacos até calcinhas. Fechou e olhou o armário vazio. A mãe não tinha joias e foi apenas uma questão de praticidade, tudo ia dentro da mala, junto com a mala.
Entrou no banheiro, as toalhas de banho e tapetinhos tiveram o mesmo destino, mas estes foram nas sacolas de plástico grandes que tinha conseguido nas lojas de produtos em atacado no bairro em que morava.
Na sala, os móveis seriam todos retirados pela casa de doação, mas os enfeites foram colocados em caixas de papelão que trouxe do mercado. A mãe era muito cuidadosa com seus bibelôs e ela seria também, mesmo que tivesse decidido doar absolutamente tudo.
Na cozinha, retirou das gavetas as toalhas de mesa, guardanapos, aventais e panos de prato. Percebeu que para as panelas, vasilhas e potes de plástico, precisaria de mais caixas e sacolas. Antes de sair para buscá-las no carro, abriu todas as portas dos armários para avaliar os eletrodomésticos e calcular o tanto de coisas que ainda faltava embalar. Achou o que nem lembrava que estivesse ali, o livro de receitas. Era muito velho, com folhas rasgadas; borrado pelos ingredientes do preparo de algum quitute. Folheou, queria achar a sua receita preferida. Tinha esquecido de pedir para a mãe ensiná-la a fazer aquele doce que ela tanto comeu na infância, adolescência e vida adulta, e amava.
Como será que o doce chamava? A mãe dizia que era o Pudim da Maria Helena, mas isso não dava muitas pistas. Lembrava do gosto, mas era tudo tão amalgamado que não podia distinguir muito um ingrediente do outro. Além do mais, quem era Maria Helena? Ela nunca tinha ouvido que alguma amiga, ou parente, tivesse esse nome. Mas continuou olhando atentamente as páginas e eis que 'Ele' brilhou diante dos seus olhos.  O nome era esse mesmo, escrito com letra bem feita, caprichada. Ovos, leite, leite condensado, licor de anis, baunilha, raspas de limão, parecia simples. Tinha também o modo de preparo, demorado, mas aparentemente sem muitos segredos. Sorriu pela ideia de fazer o pudim naquela hora, ali mesmo na cozinha da mãe, como uma traquinagem, como uma homenagem. Ainda tinham alguns ingredientes nos armários, só faltavam ovos e leite que ela foi comprar no mercadinho da esquina. Voltou e foi direto ao buffet da sala, pegar o licor, que sabia onde ficava guardado. Com as bebidas achou uma caixinha de papelão, decorada com decalques, bem no fundo, escondida. Abriu e viu cartas, cartões, fotos. Suspirou, talvez encontrasse ali segredos da mãe. Se perguntava se estaria preparada. Voltou para a cozinha, começou a fazer o doce. A primeira parte foi fácil, bater todos os ingredientes no liquidificador. Depois, caramelizar a forma de buraco no meio e colocar no forno em banho-maria por ‘milhares de horas’. Enquanto o pudim cozinhava pegou um cálice lindo, do jogo de taças que tinha sido presente do casamento dos pais, e se serviu de licor. Imitava o jeito da mãe segurar a taça, mas também lembrava que na infância ela brincava com os copos, mas só com água. Se sentou no sofá, colocou a caixa no colo e foi olhando. Primeiro as fotos. Todas tinham data e ocasião anotadas no verso. Os principais momentos da vida. Tinham poucas fotos dela, apenas no nascimento, um ou dois aniversários e a formatura. Mas tinham muitas fotos da mãe, na juventude, com amigos, com parentes, com os pais, com seu pai e com outro homem. Curiosa foi olhar quem seria aquele bonitão. Virou a foto e viu a data, não fez sentido, pois ela já era nascida e estava na escola nesse ano. O nome era neutro, Carlos. Não lembrou de nenhum Carlos. Na descrição da ocasião leu a frase: viagem para a praia. Engoliu, sorriu. Pegou as cartas, ali deveria ter mais informações.
Entre os escritos nas folhas amassadas de tanto manuseio, leu bilhetes do pai para a mãe, conversas e notícias de algumas amigas, confidências com Carlos. As dele, eram cartas lindas, de amor, de proibição, de tristeza. Mas ainda não sabia onde tinham se conhecido, o que tinha acontecido. Será que o pai tinha descoberto o romance? Achou uma foto em que reconheceu o lugar.  Era o portão da escola em que tinha estudado quando pequena. Sentiu um choque, uma espécie de medo, estava chegando perto de uma revelação, já sabia o que era, mas não tinha coragem de pensá-la. Carlos era pai de um de seus colegas de escola, o Mauricio. Ela lembrou. Estudaram juntos, faziam trabalhos um na casa do outro. O pai dele, se ocupava do garoto todas as tardes e a mãe era secretária e nunca aparecia. As memórias pareciam escorregar para a sua consciência numa velocidade impressionante, não dava para conter mais nada, era uma enxurrada. Ela ia muito mais à casa de Maurício do que o contrário. A mãe ia junto e ficava lá, ajudando Carlos com alguns afazeres dele. Uma vez, eles pediram para as crianças ficarem no quartinho de estudos que iam fazer um bolo de chocolate. Sim, o bolo foi feito, mas eles iam com frequência para o quarto no andar de cima, com a desculpa de ver um conserto na cortina ou pregar botões de camisa. Ela lembrou que sentia algo estranho, mas não sabia o que era. Agora sabe, a mãe teve um caso amoroso e fez sexo com outro homem enquanto ela estudava com o amiguinho no quarto ao lado. A mãe, com essa história, 'pedia muito' a ela nesse momento. Que revelação!   Será que algum dia poderia entender? Se fosse qualquer amiga, ela entenderia. nessa hora se viu uma menina, se sentiu desprotegida e ao mesmo tempo parecia ter sido traída. Pegou o licor, encheu o cálice, tomou de um gole e colocou mais bebida. É um fato, aconteceu. Ela precisava se mexer, andar. Tudo isso era forte demais e parecia que ia explodir e sair do seu corpo. Era alma e emoção demais para um corpo só. Foi até a cozinha ver o pudim, demoraria ainda umas três horas. O que faria nesse tempo todo com as provas da traição da mãe ali? Lembrou que no carro ela tinha uma mochila com tênis e roupa de ginástica e que tinha um parque perto da casa da mãe. Foi correr, precisava se desgastar. Uma hora depois voltou. Tomou um banho e usou as toalhas que tinha guardado. Abriu as malas e pegou uma calcinha da mãe, não tinha previsto tomar banho fora de casa.
O pudim cozinhava e ela continuava repassando as lembranças da caixinha, tentando entender os sentimentos. Os pais viveram juntos até a morte dele. A mãe foi uma viúva. Se perguntava por que ela se sentia traída. Era a filha e seria a filha sempre. O que ela esperava ?
Voltou às cartas, se perguntava como terminou. Organizou a correspondência por data, incluindo cartões postais e fotos. Na verdade a mãe tinha organizado por grau de importância, deixando para cima o mais revisitado e embaixo o menos importante. Ela foi reconstruindo a história que ali estava em pedaços. Era um diário sem o formato tradicional. Sentiu orgulho e achou a mãe bem criativa. Mas o ciúme, não conseguia se livrar daquele sentimento. No fundo ela queria uma desculpa para a mãe, mas não tinha nenhuma, foi apenas isso, um caso, uma paixão, algo naquela vida normal. Leu em uma carta de Carlos que a mãe o tinha assediado e quase infartou. Como assim, a mãe tinha sido a agente de tudo? Ele falava em tom simpático que aqueles sorrisos e piscadas eram insinuantes demais para ele resistir. E, quando ela se ofereceu para ficar enquanto as crianças estudavam, ele cedeu. A mãe tinha decidido ter um caso, não tinha sido tentada e cedido à tentação. Aquela mãe organizada, comedida, que tomava apenas o licor de anis e sofreu o luto do pai, não combinava com sorrisos e piscadas insinuantes. Seguiu a leitura, o pudim começava a cheirar. Sentiu o cheiro e um enjoo estranho. Ela fez uma careta. Parou. Lembrou. O cheiro era da casa do Maurício. A mãe do menino, esposa de Carlos, a secretária que sabia só fazer uma receita na vida, o pudim de anis. A mãe era amiga da mulher do amante???!!!??? O buraco ficava cada vez mais fundo. Ela sentia uma decepção enorme, mas sabia que isso era o moralismo dela que falava alto, que se fosse sua amiga, ela entenderia totalmente. Agora iria até o fim. Estava na dúvida se seguia a cronologia ou partia logo para a última carta. Ansiosa, pegou a última. Era de Carlos, que dizia que aquela situação precisava ser definida, pois ele tinha recebido uma proposta de trabalho em outro Estado. Ele dizia, “Venha comigo, meu amor. Vamos viver como tantas vezes imaginamos. As crianças são nosso maior bem e são pequenas, se adaptarão a uma nova situação. Maria Helena e Cléber (o rosto sério do pai apareceu na sua cabeça), superarão, são adultos, saberão continuar a vida deles. Eu quero viver essa história além do que temos hoje”.   Não tinha a resposta da mãe, mas imaginou. Tinha um cartão assinado C. que era dele, com uma paisagem litorânea, ensolarada, com a data que contava dois anos após a carta do pedido de união. Ele dizia apenas, “aqui é lindo, você estaria radiante, não te esqueci, mas posso viver de lembranças. Love, C.” Ela só se perguntava que mulher era aquela, que começa um caso e decide abandonar um homem cheio de promessas de amor. Ela queria a mãe viva para perguntar por quê? Era tarde demais.
O pudim estava pronto, cheiroso, ela desligou o forno e o deixou esfriando em cima da pia. Mais uma dose de licor e foi pegar as caixas e sacolas para os eletrodomésticos da cozinha. O celular tocou, perguntavam se o caminhão da casa de doação poderia ir até lá retirar tudo. Ela disse que sim.
Juntou todas as lembranças, cartas, fotos e cartões, na caixinha de decalques e colocou na bolsa, junto com o licor de anis e o livro de receitas. Não quis doar os cálices, os embalou e colocou junto à sua mochila. Desinformou o pudim bem na hora que os rapazes chegaram. Eles levavam tudo para o caminhão e ela disse que no final comeriam o melhor doce do mundo, o pudim da Maria Helena. Foi assim que ela voltou para casa, com um resto de pudim ainda na forma de banho-maria, um livro de receitas da mãe-rainha do lar, os cálices que tanto eram caros a ela, uma calcinha usada e a caixa de recordações da mulher desconhecida, que era sua mãe.

Simone de Paula - 17/02/2017



Conto enviado para o concurso Sweek Leia Mulheres com o tema Descoberta.
Publicado agora no blog em homenagem ao dia das mãe que acontece no próximo domingo.

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