sexta-feira, 27 de abril de 2018

Depoimentos III


Sou Eugênia, tenho dois filhos, três diplomas, doze anos na empresa em que trabalho atualmente e em cargo de destaque. Ganho bem, moro bem, me visto bem, mas estou bem mal. Mais do que seguir acompanhando o coro do que muitas colegas de trabalho dizem, sobre não ter tempo para filhos, família, vida pessoal, eu estou mal pela minha última frustração. Concorri a um novo cargo, uma promoção. Era o certo a fazer. Eu era bem avaliada e bem cotada para a vaga, e passei. Isso poderia me deixar bem, feliz.  Mas não. Fiquei pensando muito no que poderia significar esse constrangimento  que estou sentindo diante da conquista. Saquei depois de um tempo, conversando com alguns amigos próximos, com quem posso falar da vida no meio corporativo. Eles me contaram das suas últimas promoções, como tinha acontecido e ali, ouvindo, percebi nitidamente uma diferença brutal: ninguém pergunta pra eles sobre eles aguentarem determinada demanda da vaga. Eu, desde a minha primeira promoção, há quinze anos, sou questionada sobre dar conta plenamente do que é exigido naquela posição. Depois do João, meu primeiro filho, a coisa ficou mais acirrada. Ninguém apontava o dedo para a família, o filho, mas perguntavam se eu achava que conseguiria assumir tanto, pois tinha 'escopo' de vaga acima daquela que dava o título à cadeira, mas como só tinham aquela posição, tinham que assumir isso. Aliás, tinham não, eu tinha. Depois do Pedro, o segundo filho, a coisa ficou mais forte, afinal, quanto mais eu subia, mais eu assumia. Eu explicava que tinha suporte para dar conta da vida doméstica, mas ao mesmo tempo, colocava que queria ter tempo livre. Mas afinal, quem não quer ter isso, quem não tem isso: casa, família, tempo livre? Não fizeram essas perguntas para meus amigos, ou melhor, para os homens. Eles parecem inclusive ter direito a isso, pois nem os questionam sobre isso. Assumi o cargo. Mais do que dar conta das demandas que receberei, terei que me defender de olhares cobradores, que devem controlar o horário que meus emails são enviados, pois esperam realmente que sejam após as dez da noite ou aos finais de semana. Enlouqueço a minha equipe, porque devo prestar contas de que trabalho além da conta. Ousei, devo pagar por isso. 

Sou Everton. Sou gay. Até hoje é uma crise isso em casa. Primeiro eles se separaram, depois eu assumi. Parece que precisavam romper aquela união para poderem culpar um ao outro pela minha sexualidade. A minha escolha ainda parece ter sido definida por eles. E o pior, pelos erros deles. O pai diz que a mãe mimou demais. A mãe diz que o pai foi ausente e omisso. Nenhum deles olhou e pensou: “uau, esse cara, meu filho, é capaz de amar”. Foi difícil no começo, porque eu mesmo achava que era o produto dos erros, portanto, errado. Mas quando fui percebendo olhares de carinho e desejo, fui entendendo que eu era produto do amor que eles sentiram e agora parecem incapazes de sentir de novo. Do amor deles surgiu o rancor. Se apegam tanto a isso para continuarem juntos. Acho que foi mais difícil falar para a minha mãe. Meu pai estava longe, se sentia tendo falhado, já carregava a cota dele. Ele é de uma geração que deve aceitar, porque a sociedade cobra dele isso. Mas minha mãe. Até hoje eu olho para ela e fico tentando caçar o desejo naqueles olhos, naquele corpo. Ela sim é um produto das repressões que sofreu e conserva. Inspiro as pessoas com a minha vibe, minha energia. Mas minha mãe me olha, sorri, me abraça, mas não tem o calor que eu gostaria de receber. Minha quentura não derrete aquele coração. Mas a dureza dela me abafa. Coisa estranha, amor de mãe que esfria. Ela deveria falar um pouco do que está lá, entalado.

Meu noivo se matou. Faz um ano. Ele se jogou da janela enquanto eu dormia no quarto. Deixou um bilhete do lado do copo de água que ficava toda noite no criado-mudo ao lado da cama. “foi por você”. Foi por mim? O você sou eu? Não morri junto, mas fui condenada pelo você dele. Não sei o que ele quis dizer, mas fui acusada, julgada e condenada por uma nota com três palavras e um louco que se jogou da janela. Acordei com um grito e o interfone tocando sem parar. Fui atender e me perguntaram dele. fui procurar pela casa e não o vi. A campainha tocou e o vizinho entrou correndo e foi para a janela. Eu fui atrás e vi. O corpo, o sangue. O tempo parou. Eu desliguei. Morri ali. Voltei, ressuscitei. Mas sou um zumbi. Não sei quanto tempo de pena eu tenho que cumprir para sair dessa prisão. Sentem pena de mim. Eu não, porque eu não sinto a pena, eu vivo a pena, aquela que eu tenho que agir, que cumprir. Quem vai me liberar? Nem sei por onde começar. Entre o fim e o começo, nessa ordem contrária, o que existe? 

Simone de Paula – 11/04/2018


sexta-feira, 20 de abril de 2018

Depoimentos II


Olá, eu sou o Jefferson. Eu não gosto do meu nome. Me apresento como Jeff. Meu nome foi minha mãe que escolheu. Ela achava bonito. Dizia que o nome parecia grande, porque o som se estendia no final, Jefersooonnnnn. Ela sempre me chamou pelo nome inteiro. Nada de abreviação ou apelido. Era engraçado, porque quando a gente brincava na rua, meus amigos achavam que ela estava sempre brigando comigo porque chamava pelo nome completo. A gente sempre se deu bem. Sou filho único, mimado. Mas nem sempre as coisas são como eu quero. Aliás, as coisas são como ela quer. Eu tenho pena dela, sozinha, posso aceitar o que ela pede, fazer do jeito dela. Fiquei noivo há um ano. Quero casar, mas não posso deixar minha mãe sozinha. Por mim eu levava ela junto. Minha noiva me mata se souber que eu penso nisso. As mulheres são complicadas. Gostam de briga. Ou se juntam pra brigar, ou brigam uma com a outra. Minha noiva diz que a gente tem que ficar casados de dois a três anos antes de ter filho. Fala que é pra curtir a vida de casado. Mas eu, por mim, tinha filho logo. Isso ia ajudar minha mãe a se ocupar um pouco, já que eu vou sair de casa. Por que as mulheres são tão complicadas? Tudo tem jeito certo, prazo certo. Eu não entendo as mulheres, mas não vivo sem elas. Quer ver que quando nascer o filho, vai ser menina?

Sou Jurandir. Adoeci feio nesse ano. Problemas em tudo quanto é órgão. A velhice é um fardo. Jovem quando fica doente, ou sara logo, ou morre. Velho adoece e fica cada dia pior. Não quero morrer, mas carregar dor no corpo, remédio de hora em hora, medo na alma, isso também não é vida. Estou mal, nem lembro mais das histórias boas da vida. Acho que é por isso que minha morte tá longe, porque eu não tenho nem ilusão, nem nostalgia. Se ela estivesse aqui do lado, eu tava me enganando. Mas ela tá longe e eu tenho que olhar todo dia no espelho. Não fui um homem bonito, mas tive meu charme. Hoje, sei que tenho um cheiro estranho. Nem é falta de banho, porque eu até gosto de uma boa chuveirada. Tenho uns amigos que só tomam banho quando a esposa reclama. Eu não. Sou bem metódico, tenho rotina, mas pra quê? Hoje a rotina é pra dar conta de tanto remédio. Sinto falta de conversar, de ver criança brincando na rua, de ouvir a alegria das pessoas no parque. Não tenho vontade de sair de casa, mas se fico por lá, apodreço. Meu irmão me mandou um cartão postal. Foi viajar para o sul, Gramado. Me escreveu, porque acha que tem que me animar. Eu gostei, era uma paisagem bonita e ele escreveu com carinho, me chamou de ‘mano’. Ele voltou e a gente nem se viu. É, a gente tem família para isso, para escapar da solidão. Mas quando a gente se junta, briga. É pesado demais conviver com tanto sentimento forte. Laços de ternura, laços de família, nós de amor. Eu queria amar de novo.

Nem quero me apresentar, tenho vergonha de mim, sinto culpa pelo que passa na minha cabeça. Minha vida é assim, um fracasso. Mas nem acho a vida uma merda. Sou meio molecão, não quero responsabilidades. Durante o dia revezo meus pensamentos entre comida e sexo. Gosto de comer bobagens, coisa que hoje dizem que não é saudável. Eu dou risada, porque ouvindo, o mesmo vale para o sexo. Adoro mulher, de todo tipo. Olho as mulheres na rua, no trabalho, só penso em putaria. A real, é que não tenho muito mais o que pensar na vida, almejar. Já tive relacionamentos mais sérios, mas toda vez que fico pra valer com uma mulher, me dá vontade de trair. Se estou sozinho, não quero saber de compromisso. Moro na casa da minha família. Tem gente que diz que é um favor que eles fazem pra mim. Mas eu que cuido da casa. Meus pais morreram, mas nem quero pensar nisso. Prefiro dizer que sou doente, tenho depressão. Mas eu sei que não, porque o que eu quero, eu faço. O difícil pra mim é amar. Parece que tem gente que quer demais o meu bem. Eu não entendo o por quê disso. Se eu não to fazendo nada de bom pra pessoa, não tem porque querer o bem pra mim. Eu sou só, eu vivo só, e eu só quero isso.

Tatiana de Freitas, Tati. Adoro a vida, meu corpo, meu esporte. Sou tenista. Já entrei em muitas competições. Ganhei, perdi, estou aqui. A idade vai chegando. O rendimento vai baixando. Minha mãe continua me pentelhando. Ela pega no meu pé desde menina. Queria uma filha campeã. Parecia fazer de tudo para mim. O mim é a medalha e não eu, esta pessoa que fala. Ela já está pensando no meu futuro. Se eu devo ser treinadora ou professora. Eu quero outra coisa. Quero casar, ter filhos, vida tranquila. Mas ela nem me deixa namorar. Tive uns rolinhos com outros tenistas, ou meninos com quem estudei, mas nada segue, porque ela interfere e proíbe demais. Já pensei em fugir de casa. Me matar nunca! Mas me mutilo, às vezes. Coisa boba, só pra ter um medinho. Furo meus braços com a ponta do compasso. Da ponta dos dedos até o ombro. Quando ela vê, eu digo que foi sem querer. Ela me chama de estabanada. Ela sabe, só pode saber. Fico no quarto a maior parte do tempo que estou em casa. Já tive romances com meninas. Aliás, estou apaixonada. Quero casar e ter filho, mas com a Evelin, que é quem eu amo. Ela também me ama. Tem trabalhado e juntado grana pra gente fugir. O irmão dela, o Robson, vai ser o doador para nossos filhos. Ele é um bom irmão, e um amigo para mim. Eles perderam os pais cedo e se ajudam muito. Moram juntos. Acho que vamos morar na praia, vai ser bom. Quando eu sair de casa, minha mãe nunca mais vai saber de mim.

Simone de Paula abril / 2018

 

sexta-feira, 13 de abril de 2018

Depoimentos I


Oi, meu nome é João. Nem sei o que eu vim fazer aqui, mas eu acho que eu tenho que falar algo sobre mim, né? É estranho, quando a gente tem que falar da gente, a gente não tem o que falar. É, eu tô ficando nervoso com isso. Não tô ficando bravo, mas meio agitado, sabe? É, falar de mim... Tá, peraí... Bom, eu trabalho, tenho minha casa, minha família. Faço tudo certo, desde que ninguém me atrapalhe. Mas como é difícil não ser atrapalhado, né? Não que eu seja confuso, hahahhaa, pareceu isso quando eu falei. Me senti bobo agora. Como eu disse uma coisa que quer dizer outra? Sei lá, bobagem isso. Bobagem de um bobo. 

Eu sou a Suelen. Eu estava louca para vir aqui. Preciso muito contar umas coisas. Eu finalmente terminei com meu namorado, aquele traste. Foi assim, ele me mandou uma mensagem de whatsapp. Vou ler, porque ele diz que eu invento coisas, mas ele escreveu. Ouve só: “E aí?” Percebe, depois de uma semana sem nenhum contato, depois da nossa discussão, ele me manda um ‘E aí?’, só. Eu dei corda, queria saber o que ele ia dizer. Mas ele não sabia o que dizer. Eu queria que ele soubesse o que dizer. É o momento de reconquistar. Mas ele foge, se esquiva. Eu queria muito que ele tivesse dito uma frase romântica, cheia de carinho. Ele nunca tentou ser carinhoso, mas eu ainda esperava carinho dele. Seria tão bom se ele fosse espontâneo como meu primeiro namorado, que chegava escancarando seu amor por mim. Ou como o último, que me mandava textos, músicas, vivia falando comigo o dia todo. Mas por que eu terminei com todos os meus ex? Por que acaba? Eu disse tchau para o traste, e ele aceitou. Todos eles aceitam o meu adeus. Meu deus, sou sempre eu que digo adeus. Mas eu digo por mim ou antecipo o adeus deles? Alguém tem que terminar o que começou, né?

Oi, eu sou Alzira. Me perdi tentando chegar aqui. Eu sei que eu tenho muito a dizer, mas me confundi com o ônibus. Achei que ele passava no ponto da esquina da Olavo de Freitas com a Monsenhor Vieira. Esperei mais de quarenta minutos. Foi quando perguntei para o rapaz que esperava comigo e ele disse que o ônibus que vem pra cá, passava na rua de cima. Quando cheguei no ponto certo, ainda esperei mais vinte minutos. Bom, agora estou aqui, ainda bem. Vou falar rápido para dar tempo.  Saí cedo, pensei no que eu ia fazer enquanto esperava aqui. Mas demorei e agora tenho pressa. Bom, acho que a verdade é essa, tento me adiantar, mas me atraso e aquilo que mais quero, só consigo um pouquinho. Estou tão aflita ainda com o meu atraso, que nem sei o que quero dizer. Minha vida está um caos. Eu tenho uma rotina cheia, muitas pessoas para cuidar, mas quando chego em casa exausta, caio no sofá e não vejo mais nada. Como organizar tudo isso? Essa bagunça toda é uma loucura. Por onde eu começaria? Acordando mais cedo, daria para fazer alguma coisa em casa antes de ir para o trabalho. Mas se eu colocar a roupa na máquina, esperar terminar a lavagem, ou acordo no meio da madrugada, ou me atraso. Ai, olha ele aí de novo, o atraso.  Será essa a minha sina, correr para chegar atrasada?

Simone de Paula - 13/04/2018

 

quinta-feira, 12 de abril de 2018

sexta-feira, 6 de abril de 2018

É de manhã....

É de manhã... Tão cedo, tão cedo... Assim te recebo.
Te olho de longe, respondo ao aceno. 
Falando por fora, calada por dentro. 
Seu jeito sem jeito, buscando um alento. 
Pra a culpa maldosa, um pouco de bossa.... tentando pegar de volta a ponta da corda bamba, que você solta toda vez que percebe meu equilíbrio. 
Eu me ajeito, te rejeito, quem sabe assim você topa a cena que se segue ao aceno. 
Respiro, refresco a tua memória.
Palpita coração, palpita... deixa bamba não a corda de cá, mas a perna de lá. 
Pega na minha mão... a sinta como um bastão, que modula as forças do sim e do não. 
Não olhe pra baixo nem pra cima. Não arrisca. 
Olhe pra frente, olhe pra mim. 
Mire no brilho seguro que mostra a luz do fim do túnel, a saída do seu trampolim. 
Sei lá se isso é bom ou se é ruim, mas pra vibrar, só assim.

Simone de Paula - 05/04/2018



Obs.: trilha sonora sugerida -  "Estrada do Sol" (Dolores Duran - Tom Jobim) - Elis Regina

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Um belo dia


Viajei na terça à noite. 
Mala pronta na terça à tarde. 
Estive ocupada um dia antes.

A chamamos de segunda-feira do amor. Porque nos permitimos toda extravagância diante da vida rotina.

Um segredo compartilhado, um brinde de boa jornada, uma foto em plena rua molhada. Clínicas, paralelepípedos, pinheiros.

Depois, horas de voo, relógios confusos, abraços tão saudosos. E um pensamento:
segunda-feira do amor é aquela em que o amor está. 


Tutti giorni!

Maria Laura, SP.