sexta-feira, 9 de março de 2018

Bar do urso

Depois de horas de estrada, subindo a montanha rumo ao Pico do Ferrolho, Yolanda só pensava em parar para esticar as pernas. Maciel queria seguir, estava ávido para ver o panorama de mais uma cidade, da longa jornada que vinham fazendo. Eles eram ambientalistas que percorriam as regiões de mata mais fechada para avaliar o estado das florestas. Não tinham encontrado ainda nenhum lugar desconhecido, pois há algumas décadas, o departamento federal tinha se encarregado de mapear e asfaltar as estradas já criadas, construir um caminho que ligava os pequenos povoados que ocupavam a região.
- Maciel, vamos fazer uma pausa! 
- Calma lá, não quero parar em qualquer lugar. Essa parte da estrada é sinuosa e estreita. É perigoso.
- Faz horas que não passa nenhum carro por nós. Nem sei como a mata não invadiu a estrada ainda. 
- Eu paro assim que sentir que tem espaço o bastante para nós, a pick-up e outro veículo de grande porte.
Yolanda virou os olhos e seguia admirando a paisagem, não tinha como discutir com ele. Era muito meticuloso e por isso era um bom parceiro para esse tipo de trabalho.
- Maciel, olha!!! Tem uma placa ali no meio da folhagem, mas não é placa oficial. Para, para! 
- Tá, calma..... 
Yolanda desceu correndo, sem nem dar tempo dele desligar o carro. Afastou alguns galhos e viu uma seta indicando ‘Bar do Urso’. As letras eram grandes, amarelas, bem destacadas num tronco de madeira com corte bem rústico. 
-Vamos?!?
- Claro!!!
Cinco minutos de estrada depois e acharam um pequeno atalho que adentrava a mata. Logo viram a cabana com as letras fortes indicando o Bar do Urso. Estacionados estavam um carro, duas motos e uma bicicleta. Do lado de fora o silêncio era quebrado por um ruído forte vindo do bar. 
Entraram e se animaram, pois além de ter movimento, sentiram um cheiro apetitoso no ar. Mesas de madeira, balcão, música ambiente, tudo normal. O estilo rústico era esperado para a região. Escolheram uma mesa e acharam divertido ver na decoração os típicos potes de mel, atribuídos aos ursos. Maciel escolheu uma mesa perto de uma janelinha pequena que dava para ver o fundo da cabana. Queria perceber o movimento dos fundos. Yolanda foi procurar o banheiro. Estavam excitados com tal situação inesperada. 
Yolanda voltou de boca aberta. O banheiro tinha quadros de crianças com ursos e isso pareceu perigoso. Logo que ela se sentou, uma senhora veio ao encontro deles, trouxe uma tabuinha com o menu entalhado na madeira. 
- Olá, boa tarde! Bem vindos ao Bar do Urso. Nosso menu é simples: refeições matinais à base de aveia e mel ou carnes assadas. Para beber, temos hidromel e suco de frutas silvestres. 
Tudo parecia apetitoso e os dois resolveram pedir um pouco da cada e compartilhar. Era tudo muito inusitado para deixar passar em branco. Olharam as mesas e viram as pessoas comendo nacos de carne, afinal, era um horário que se poderia almoçar. 
Yolanda pediu o mingau da casa, que era de aveia e mel, com toque de canela. Maciel pediu sortidos de urso. Ele ficou com o hidromel para beber e ela com o suco.
- Esses sortidos de urso, o que vem?
- O sortidos traz orelhas e rabo de urso. Geralmente indicamos para crianças porque os pedaços são menores e mais fáceis de digerir. Se quiser algo mais consistente, o lombo de urso é ótimo e a barriga, mesmo sendo mais gordurosa, é muito macia. Vai de sortidos mesmo?
- O que você recomenda? 
- A barriga! A carne hoje está muito boa. Foi para a churrasqueira cedo e foi assada com calma, fogo brando, muitas ervas. O urso era jovem e a carne mais saborosa.
Maciel engoliu o salivar que antes tinha brotado dentro da sua boca e olhou Yolanda, que entrou rapidamente na conversa.
- Parece bom. Você tem esse bar há muitos anos?
-Sim, praticamente a minha vida toda. Vim para a região menina e desde então vivo aqui e preparo refeições para os viajantes. Não tem opções de comida no raio de 50km, por isso nosso movimento é garantido.  
- Como você se chama?  
- Sortidos ou barriga? Perguntou sorrindo para Yolanda, que a olhava com estupefação. 
- Barriga! 
- Já trago.
Yolanda acompanhou aquela senhora de meia idade até que desaparecesse por trás da porta da cozinha. Nos seus olhos, a imagem do vestido mais longo e por baixo botas de cano alto. O avental por cima da roupa, protegendo um vestido simples e antigo. Os cabelos cacheados, na altura dos ombros, decorado com um laçarote no topo da cabeça. Era uma menina crescida e envelhecida. 
- Maciel, você tá pensando o que eu tô pensando? 
- Sim! Essa barriga de porco vai estar deliciosa. Que bom que você viu e a gente parou. 
- Não!!!! É barriga de urso!!!! 
- Isso é jogada de marketing...
De repente volta a senhora com as bebidas. O hidromel dourado na caneca, muito convidativo. E o suco vermelho vivo, parecendo sangue, bem servido no copo longo. Yolanda estava muito curiosa. Queria entrar naquela cozinha. Queria ver quem cozinhava. Seguiu a mulher com os olhos e viu que tinha mais alguém lá dentro. Sabia que Maciel não tinha percebido as semelhanças e nem desconfiava de nada. 
- Gostou do hidromel? 
- Muito! Perfeito! Essa gente sabe o que faz. 
- Maciel, e se essa carne for mesmo de urso? 
- Será? Mas isso é ilegal. Teríamos que reportar ao departamento e fechariam o negócio dessa senhora. Se come carne de urso?
Yolanda deu de ombros e levantou em direção à saída do bar. 
- Vou pegar meu casaco no carro.
Do lado de fora, olhou tudo em volta. Pegou o casaco e caminhava como se estivesse admirando a paisagem. Foi se deslocando em direção ao fundo da casa. Ali, churrasqueira acesa e um galpão mais afastado. Ninguém cuidava do fogo. Ela seguiu até lá. Na grelha, partes de carne ainda avermelhadas. Realmente o fogo bem controlado assaria bem aquele alimento. Ao lado, um forno que cozinhava castanhas em uma cesta de palha. Seguiu para o galpão. Porta fechada, barulhos internos, frestas na madeira. Olhou, viu o que imaginava: ursos pardos presos. Mesmo esperando ver o que viu, quando viu, seu coração disparou. Virando, deu de cara com uma figura meio humana, meio animal, saindo pela porta da cozinha. Se olharam, se estranharam, se reconheceram, pararam. Ele, uma espécie de urso domesticado, seguiu para a churrasqueira. Ela foi em sua direção, queria saber se ele falava.  
- Olá!
Ele a olhou, acenou com a cabeça e voltou a virar os pedaços de carne. 
- Meu nome é Yolanda, e o seu?
Ele caminhou até as castanhas e remexeu de forma intensa, sem sentir a alta temperatura na palma das mãos, protegida pelos pelos grossos que lhe cobriam o corpo. 
- Você fala a minha língua?
Ele a olhou, sorriu e acenou positivamente com a cabeça. 
- Precisa de ajuda? 
- Não, obrigado! Seu mingau já está servido.
Yolanda entendeu o recado e voltou para o interior da cabana. Maciel comia a carne com o maior prazer do mundo. Ela olhou o mingau e quando experimentou, notou que era o melhor que já experimentara. 
- Gostou, Maciel? 
- Sim... experimenta um pedaço.
A carne estava deliciosa. Yolanda estava se apaixonando por tudo ali e não esquecia o sorriso que tinha recebido do lado de fora da cabana. Para disfarçar seu envolvimento com o lugar, brincou com Maciel: 
- Olha lá a Cachinhos Dourados... 
- Nossa, finalmente você concordou comigo, entendeu que é tudo jogada de marketing. Contos de fadas funcionam e atraem adultos e crianças.
Pediram a conta, pagaram e saíram. Yolanda gravou no celular as indicações de localização, porque ela voltaria ali sozinha. Queria saber mais desse lugar.
Retornaram ao departamento, fizeram os relatórios, mas Yolanda precisava achar um jeito de retornar e criou algumas dúvidas em certos pontos da região, incluindo a cabana do Bar do Urso. Discutiu um pouco com Maciel, mas o convenceu que deveriam voltar para colher mais dados. Ele topou, pois era muito detalhista e quando era o inspetor, tudo era minuciosamente reconhecido. 
Dois meses depois estavam lá os dois, pela estrada afora, colhendo dados e revendo a inspeção anterior. Chegando perto do bar, resolveram fazer mais uma refeição. Entraram cumprimentando a dona do bar como se fossem velhos amigos. As coisas estavam na mesma, apenas o bar estava mais vazio, só com uma mesa ocupada. Pediram carne, dessa vez o lombo e as castanhas assadas. As bebidas como da vez anterior e o molho de mel e ervas para acompanhar. Yolanda, mais à vontade, seguiu a dona do bar até a cozinha, queria conhecer tudo. Diante de tal curiosidade invasiva, ouviu uma pergunta em tom de bronca: 
- Você é repórter? 
- Não. Sou do departamento ambiental. 
- Vai fechar meu bar? 
- Não. Depende. Tem algo ilegal aqui? 
- Sim, tudo!
Por essa Yolanda não esperava. Mas continuou em silêncio até que a mulher continuasse a falar. 
- Estamos em uma zona protegida, caçamos ursos e servimos, colhemos frutas e castanhas, além do mel. Nenhum desses produtos poderiam ser extraídos, mas o fazemos. As pessoas sabem que é um lugar secreto, apenas para quem presta muita atenção à paisagem no percurso. Tentamos manter tudo o mais nativo possível, mas somos humanos e alteramos qualquer lugar em que nos metemos. 
- E o churrasqueiro, quem é? 
- Um nativo. Quando o encontrei, estava sozinho, mas era excelente cozinheiro. Eu sei, ele e estranho, não é da cidade. Viveu na floresta a vida toda. Não sabe dizer de família e passado. Parece saber a linguagem do mato. 
- Por que você não quis esconder nada de mim? Quer ser denunciada? 
- Não, claro que não. É minha vida e amo mais a região que você. Uso o que ela oferece, mas em uma quantidade muito inferior ao que se usa na cidade. Mas não tenho porque mentir, você veio aqui, fuçou em tudo e voltou. Na natureza não há mentira, apenas atos e consequências. 
- Posso ver a cozinha? 
- O cozinheiro também?
Com um sorriso, Yolanda entrou pela porta da cozinha. Maciel olhava intrigado, mas sorvia seu hidromel com prazer. Queria levar litros daquilo para casa. A comida chegou e ele já foi degustando.
Nos fundos do bar Yolanda tentava falar com o cozinheiro, mas ele não respondia, mesmo sorrindo e fazendo contato com ela. A senhora veio em seu auxílio: 
- Ele fala poucas palavras. Aprendeu, mas não gosta de falar. Prefere as sensações, toques, olhares, sons, cheiros. Geneticamente ele parece uma aberração, pois tem o corpo muito peludo. Talvez venha de uma linhagem de misturas entranhas, não posso dizer, o encontrei assim. 
- Eu quero ficar aqui, com vocês. Fiquei encantada, não consegui dormir direito esse tempo todo. 
- Não há dinheiro aqui, apenas viver. O que ganhamos é para poder comprar o que não produzimos aqui. 
- Topo! 
- Por quanto tempo? Parece ótimo vendo de fora, como alguém da cidade. Adoecemos e temos que tratar aqui, sabendo que talvez morreremos. Não é um conto de fadas. 
- Posso fazer uma experiência de três meses? 
Yolanda sorriu e tinha certeza que queria viver ali, com o churrasqueiro. 
- Sim.... seria bom alguém para me ajudar e manter esse lugar no futuro.
Yolanda voltou para a mesa e falou de forma direta com Maciel. 
- Vou ficar, não volto com você. 
- Como assim? Férias? 
- Não. Vou viver aqui. 
- Sério? 
- Sim.... adorei a comida... poderia comer isso a vida toda... 
- Ok.....
Maciel limpou a travessa, levantou e seguiu viagem sem sua companheira. Ele sempre achou Yolanda meio louca, mas agora teve certeza.


Simone de Paula - 04/3/2018

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