sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Timoneiros do apocalipse

Estavam sentados lado a lado no banco do shopping, em frente à loja de artigos de cama, mesa e banho. Era irônico. Os corpos próximos pela intimidade de anos de convívio constrastavam com a distância que tinha se instalado entre eles. Patrícia notou o reflexo deles no vidro da loja. A imagem se misturava com as promoções de lençóis. Era um fato, estavam baratos, talvez ela até precisasse comprar um jogo. Mas não negou a surpresa que sentiu em notar a si mesma com pensamentos tão banais nesse momento, ao lado de Alberto. Tinham se encontrado para falar da assinatura da separação. Os advogados pareciam dificultar um processo que os dois queriam muito. Não se olhavam, não falavam, nem sabiam porque tinham que estar ali, pagando a fortuna que estavam pagando para os trâmites do divórcio.
Casaram por amor e vontade de construir algo juntos. Separaram porque tiveram tantas coisas juntos que não sobrou espaço para as individualidades necessárias, que é preciso para cada ser humano se sentir único. Tudo clichê. Ela casou porque precisava desesperadamente de alguém para ajudá-la a viver uma vida que queria, mas não tinha forças para realizar. Ele casou porque era muito carente e tinha medo de ficar sozinho depois da morte dos pais. Casaram para ser ‘para sempre’, mas não imaginaram que escolheram a ‘pessoa errada’. Ela buscou o pai ideal, ele a mãe perfeita. Erraram feio no alvo. 
Alberto finalmente percebeu o reflexo deles naquela vitrine gigante, olhou nostálgico, percebeu um traço da beleza que viu em Patrícia no primeiro encontro. Ela era viva, mas beleza não tinha tanta assim. Isso inclusive foi bem importante na segurança que ele sentiu quando decidiram casar. 
Os pensamentos frouxos dos dois, o silêncio calmo daquele momento, a visão de um horizonte que parecia melhor do que o lugar onde se encontravam. Realmente, nem se deram conta do que viria pela frente e estavam justamente no meio de todas as fantasias e ilusões que acreditaram ser a vida e a felicidade.
Um idoso encosta no ombro de Alberto pedindo para ele abrir espaço no banco para poder sentar. Alberto chega mais perto de Patrícia, que ao mesmo tempo tirava a bolsa que estava ao seu lado para dar lugar à criança que tomava sorvete com a mãe. Ela parecia não se importar com aquilo, mas sentiu, sentiu algo, abafou algo.
Finalmente se olharam através do vidro, imagens misturadas com produtos em liquidação, agora ladeados pelos novos personagens daquela cena vazia.
Ela sentiu nele a apatia. Se ela não começasse a falar, passariam horas ali e nada resolveriam. Mas era um assunto que deveria ser começado por ele, que estava criando problemas com a divisão dos bens que construíram em dez anos juntos. Ele viu nela a insegurança. Jamais ela começaria a conversa, mas a qualquer palavra dele, ela tentaria levar as coisas para uma discussão enorme. Ele só queria o jogo de jantar que a Tia Lina tinha dado, porque era importante para ele, ainda que ela adorasse aquela louça.
Emoções afloradas pela presença dos novos personagens e pela proximidade dos corpos. Continuaram se olhando através do espelho que a vitrine se tornou. Ela olhou a criança e olhou para ele. Ele entendeu que ela estava receosa que pingasse sorvete na sua roupa. Mas o que ela queria mesmo ter dito é que talvez um filho teria evitado a situação. Ele mexeu os lábios e inclinou a cabeça para o velhinho que mexia na receita médica que tirou do bolso, tentando enxergar bem o que estava escrito. Ela achou que ele estava achando que um idoso não deveria andar assim, desacompanhado, pelo shopping. Mas ele queria mesmo dizer que eles chegariam na velhice sozinhos. 
No mesmo momento, a mãe da criança pede para ela olhar a menina por alguns minutos enquanto ela ia jogar os guardanapos no lixo e o senhorzinho pediu para ele decifrar a letra do médico. Ajudaram. Olharam verdadeiramente para a solidão que seria a vida deles no futuro. Ele, um velho que precisaria de estranhos. Ela uma menina, que contaria com quem encontrasse pela frente para tomar conta dela. Eram isso, desde sempre. Recusaram ser outro. Casaram para ter o par perfeito para quem eram e não para ser o par construído para o outro. 
A mãe agradeceu, pegou a criança e saiu. O velhinho pegou a receita e entrou na farmácia quase em frente. Foi tudo tão rápido que nem precisariam de fato deles. Se olharam, não falaram. Ela nem lembrava mais que pensou em lençol e ele nem sabia o que estava fazendo ali. Sentiam raiva, decepção, medo, aflição, não tinham como falar do jogo de jantar.
Patrícia levantou, com seu habitual modo de ser, que parecia ativo e decidido. Ele levantou logo depois dela. Se olharam finalmente nos olhos. Ele falou, porque ele dava a dianteira das coisas mais práticas ali. Disse que ficaria com o jogo de jantar e pronto. Não tinha porque estender essa situação por pratos. E a tia era dele. E por fim completou que ela deveria agora ir atrás do próprio jogo de jantar, pois ele foi incapaz de oferecer isso para ela. Ela assentiu, mexendo levemente a cabeça e estendeu a mão. Se despediram. Ele seguiu em direção à farmácia, precisava comprar analgésicos. Ela entrou na loja de lençóis, não perderia a promoção. Seguiram. O que estava debaixo de camadas de expectativas criadas neles para a vida, continuou ali, escondido. O que pensaram um do outro, permaneceu no pensamento que escapou na hora que levantaram. Não entenderam porque se separaram como não tinham entendido porque tinham se separado. Alívio e pesar, era com isso que saiam do casamento, mesmo que ele tenha ficado com o jogo de jantar e ela tenha permanecido no apartamento. 


Simone de Paula - 18/11/2017

Um comentário:

  1. Muito bom, infelizmente muitos casais não sabem o que significa o casamento.

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