sexta-feira, 3 de novembro de 2017

As minhas baratas

As impressões estão muito mais perto das alucinações do que da realidade. 
Ontem mesmo eu estava jantando, como acontece todas as noites. Tudo era o mais ordinário possível. Eu no meu lado da mesa e meu marido no dele. A comida de sempre, a conversa sobre alguma amenidade. Tenho o hábito de cruzar as pernas, não importa onde me sento, e na mesa da cozinha acontece o mesmo. No entanto, ontem à  noite, na troca da cruzada de pernas senti um peso estranho no meu vestido, alguma coisa caiu no meu colo. Me assustei. Mas o barulho que ouvi, o peso e a forma que percebi, tudo me levava à certeza do que era, mas ao mesmo tempo, aquilo, ali, era impossível. Como uma barata estava no meu colo? Na minha cozinha? Caindo de onde? Debaixo da mesa? Da dobra da toalha?
Me movimentei com calma, não queria fazer alarde, aquela era a minha barata, em mim, no meu colo. Queria lidar com isso antes do escândalo que meu companheiro de cena faria. 
Descruzei a perna, olhei no colo, olhei no chão, sacudi o vestido, mexi na barra da toalha, tudo com muita sutileza, queria ver a barata, mas ela tinha sumido. Será que ela esteve ali? Ela estava ali! Mas não existiu na materialidade sentida por mim. Segui o jantar, mas queria muito achar o que vi e vivi e que tinha escapado das minhas mãos antes de tocá-la.
Reflito sobre isso na noite mal dormida. O dia de Finados tinha acabado de passar e não pensei direito nos meus mortos.
A semana tinha sido de luto mais uma vez por eles. Mas no dia de fato nada me lembrou daqueles que passaram, porque ainda são presentes. Eles se hospedam em mim, no meu colo, na dor forte que sinto no meu estômago quando penso na falta que me fazem. Quero que vivam, os alucino a cada vez que os culpo por terem me deixado. 
A barata, essa minha de estimação, só veio me lembrar que tem alguma coisa em mim que tenho que matar. As baratas não me assustam, nem causam nojo, nem nada. Se aparecem, morrem com uma chinelada certeira e vão para o lixo recolhidas com um papelzinho. Familiares, esses passados parece que pedem uma chinelada e o descarte simples com um papelzinho. Se estão só na alucinação, fora da materialidade da realidade, que sejam eliminados por um ritual. Que eu os deixe passar.


Simone de Paula - 3/11/2017

 
Obrigatório mencionar Kafka e Clarice Lispector nesse conto.

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