sexta-feira, 17 de março de 2017

Quem chamou Lilibeth?

O dia já tinha amanhecido fazia tempo e o barulho da rua não cessava. Lilibeth tentava dormir mais um pouco. A noite tinha sido exaustiva e quando ela saisse da cama ainda teria muita faxina a fazer na casa. Cortina cerrada, quarto escuro. No meio do outono, nem calor nem frio podiam atrapalhar o sono que insistia. Mas gritos, buzinas e a obra da casa ao lado, isso era impossível de controlar. Sonhava com o dia que pudesse estar num lugar vazio, sem ruídos. Mantinha os olhos fechados e a mente entorpecida tentando lembrar do silêncio que ela tanto desejava. De repente ouviu seu nome. Susto, pressa, pulou da cama, acelerada. Prendeu o cabelo, colocou o vestido, que tinha deixado na cadeira, por cima do corpo nu, abriu a porta do quarto e saiu. Olhou a casa quieta, ninguém na sala, nem na cozinha. Ela jurava ter ouvido a voz do pai a chamando. Era a voz de ordem de sempre. Mas ele não estava ali. Foi ao quarto dele, nada, ninguém. Saiu no quintal, talvez ele tivesse chamado e saído. Não, ele também não estava lá. Não foi sonho, mas tambem não foi real.  Quem chamou Lilibeth?
Ela voltou para o quarto, abriu as janelas, arrumou a cama. Foi para a cozinha preparar o café e ainda carregava no peito a estranha sensação de ter sido enganada pela voz de comando que invocou seu nome. Se sentiu tola pela reação imediata e impensada com que saira daquele estado de torpor e sono e acatara o sentido de prontidão. Pensou na sua vida, na sua história.
Enquanto a água do café fervia ela tentou recuoerar a imagem da mãe. Ela nem sabia se tinha tido mãe. Viveu com o pai a vida toda. O pai e ela, ela e o pai. Mas teve uma mulher, que aparecia de vez em quando na casa quando ela tinha uns doze anos, Eulália. Era muito estranha e vivia mexendo nela, olhando o corpo, os cabelos. Depois virava para o pai e comentava coisas que ela não lembrava, mas percebia no olhar do pai uma atenção enorme, coisa que só via quando ele contava dinheiro. Os olhos dele faiscavam e os labios pareciam segurar a saliva que poderia escorrer pelo canto da boca a qualquer momento. Coou o café e colocou na xícara com muito açúcar, ela gostava de tudo muito doce. 
Revisitava as cenas que nunca esquecia. Os homens que entravam na casa, no quarto, no corpo. Nas primeiras vezes o pai a chamava, fazia carinho nos seus cabelos e conversava com ela em tom suave, dizendo que eles estavam sem dinheiro para comer, mas que o estranho tinha muito mais que eles e queria dar um pouco, mas que queria algo em troca que ela poderia dar. Ela aceitou. Ela aceitou? Ela confiou. Se decepcionou. Chorou, gritou, apanhou. Eulália frequentou muito a casa no começo, orientando o pai. Depois de um tempo, das conversas suaves, dos subirnos, das surras, ela calou e acatou. E a partir dali o que ela atendia era a voz, o grito, o comando.: "Lilibeth!", e ela corria, obedecia como um robô. Muitas vezes foi bom, ela não pode negar. Muitos homens ela amou, mas eles sumiam e ela sofria quieta pelo sentimento impossível. Não tinha amigas, não tinha ninguém. Era ela, o pai, a voz, os homens. Eulália sumiu, nunca mais apareceu desde que ela tinha aceitado colaborar com o sustento da casa. O pai tinha a ordem e ela tinha o corpo. O corpo e apenas 15 anos de idade. 
Colocou mais café na xícara. Sentiu fome, pegou leite, pão e manteiga e continuou sentada na mesa da cozinha, comendo e olhando a toalha, ainda com a sensação estranha que perturbava seu peito. Lembrou de muitas vezes olhar o pai rindo e contando dinheiro enquanto ela tentava dizer que estava enjoada, cansada, machucada. Ele nunca ouvia, só falava e ria. Ela não sabia nada sobre o dinheiro, o que ele cobrava, o que pagavam. Ela já tinha entendido que não era espontâneo, que ninguém oferecia o dinheiro a mais que tinham por uma espécie de caridade esquisita como o pai tantas vezes quis fazer parecer. Ela não tinha a mínima ideia de nada, nem do preço daquele pão que ela comia. Ela mal saía de casa. Nem sabia como andar direito. Foi à escola por um tempo, mas depois dos quatorze anos, nunca mais. 
O pai chegou da rua, com voz carinhosa, a chamando de Lili. Ela não respondia, mal falava com ele, era muda, para ele e para todos os outros homens. Ela não precisava falar, nenhum deles queria ouvir. O pai mostrava um vestido que tinha trazido para ela. Ela olhava e não achava nada, mas sabia que deveria experimentar naquele momento e fazer um oequeno desfile, exibindo o produto que ele ofereceria naquela noite. Fez, obediente. Ele sorriu o sorriso dos olhos gananciosos. Ela viu. Queria mais um tempo sozinha, precisava fazer essa coisa do peito passar. Pediu para dar uma volta pelas ruas. Ele se surpreendeu, mas disse que iria com ela, que era perigoso. Ela aceitou, não saberia mesmo onde ir e de onde voltar. Seguiram algumas ruas, ela olhava muito bem as esquinas atravessadas, registrava o caminho de ida e vinda. Na volta, disse ao pai que queria andar mais, que o corpo doía de ficar tanto em casa. Ele aceitou. O peito acalmou. Os dias passaram, a rotina noturna comtinuou, mas ela não dormia mais, passava muito tempo em claro, pensando, refazendo o caminho na cabeça. Onde daria o final da avenida, o fim da cidade? Dentro dela crescia o desejo de ir embora, sair de lá de vez. Sentia raiva, aquela que parecia nunca ter sentido, mas sabia que tinha engolido. Numa manhã como aquela que alucinou a voz de comando, sem ninguém em casa, com o barulho da rua, pegou algumas roupas e saiu. Seguiu sem parar, reto, foi ver onde ia dar. Andou um, dois dias. Pedia alguma comida em um bar, sabia sorria para homens e ganhar algo deles. Aceitou uma carona e foi parar num quarto fedorento. Fuigiu se lá. Percebeu que teria que fazer o papel do pai, negociar o seu corpo se quisesse ter dinheiro para seguir em frente. Não sabia. Tentava cobrar, dizer preço, diziam que sim, mas riam depois e a largavam sem nada. Um deles, muio educado, lhe chamou de Lilith e disse que era o nome de uma mulher rebelde e desobediente, primeira esposa de Adão, expulsa do paraíso. Ela lembrou da casa, do pai, do paraíso. Quis voltar. Não tinha para onde ir, nem tinha como negociar a si mesma. Voltou. Olhou para o pai e se desculpou. Ele a abraçou. Ela disse que não queria mais nenhum homem. Ele disse que não sabia o que fazer para ganhar dinheiro. Ela também não sabia. Sorriu para ele, fez um café e tomaram em silêncio, juntos, no mesmo vazio. Finalmente a voz calou.

Simone de Paula - 17/03/2017

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