quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Corte Profundo

Era tudo verdade. O diagnóstico, a doença, os sintomas.  Roberto nunca imaginou que seria atingido por aquele míssil. O médico foi direto, indicando o tratamento mais adequado. Já olhava a agenda para a cirurgia quando Roberto o interrompeu perguntando o que aconteceria se ele não se tratasse.
Doutor Giordano estava acostumado com essa pergunta, escolher uma especialidade em que os casos, em sua maioria, denunciam a morte, não é algo fácil. Ele não saberia dizer como escolheu, mas sabe que é o que gosta de fazer. A personalidade determinada talvez não conviva bem com especialidades de tratamento preventivo e de longa duração.
O câncer começou num órgão importante, mas não se podia ainda determinar qual. Era preciso mais exames. O tumor nasceu em algum ponto, por um motivo indeterminado. Se desenvolveu e já tinha avançado. Era preciso cirurgia e tratamento.  Genética ou algum acidente mal curado sobre um corpo incapaz de restaurar tudo? 
Roberto olhava com esperança. Será que ele poderia viver menos tempo, mas sem sofrer?  Queria alguma resposta que trouxesse alívio, e de preferência acompanhada de um café e um brigadeiro. Ele queria afeto, acolhimento, carinho, colo, mas ali não receberia isso.
Doutor Giordano, como um ser humano bem treinado, o alertou do agravamento dos sintomas no caso de adiamento do tratamento. Foi sintético, sem muitos detalhes de como tudo aconteceria, apenas se concentrou em dizer o que se passaria.
Medicina alternativa. Tratamento espiritual. Reencontro com Deus. Sair do emprego. Realizar os sonhos deixados para trás. Viajar para conhecer o lugar mais desejado no planeta. Rever parentes e amigos. Gastar todo o dinheiro guardado. Viver.
Roberto tremia, tentava falar qualquer coisa. Queria mesmo ficar calado, porque não existia nada que pudesse reverter aquela notícia. Mas se ele não fizesse nada, nem falasse, o que ocorreria? O seu destino estava decretado e a hora adiada tinha chegado. Respirou fundo e pediu ao médico para ir para casa, processar a notícia.
Doutor Giordano se levantou, estendeu a mão, olhou nos olhos de Roberto e disse em tom firme que o tratamento devia ser feito, mesmo que digam o contrário, pois a medicina se desenvolve diariamente para isso. Continuou afirmando que mesmo o incurável pode ser tratável. Seguiu até a porta do consultório e foi gentil na despedida. Quando voltou para a sua mesa, sentiu o peso da morte que rondava aquela sala há muitos anos. Olhou pela janela e desejou alguma forma de aliviar aquilo. Mandou uma mensagem para um amigo, marcando uma cerveja naquela noite. Ele seguia a vida assim, uma bebida com papo furado e começava tudo de novo no dia seguinte.
Cirurgia, quimioterapia, radioterapia, perda de cabelo, emagrecimento, isolamento, dependência, tristeza, rotina de hospitais, cama, cova e caixão.
Roberto passou alguns dias pensando. Falou apenas para o pai, idoso, mas a pessoa mais sensata que ele conheceu na vida. O pai chorou e sugeriu que procurasse uma segunda, terceira opinião. Disse que não se escondesse, que falasse com as pessoas, muita gente passa pelo mesmo e facilita o processo. Assim foi. Segunda e terceira opiniões semelhantes, mas nenhum dos outros médicos olhou nos olhos de Roberto com tanta sinceridade quanto o primeiro. Naquele olhar não havia promessas, apenas um caminho duro, mas possível. Ele resolveu voltar lá. Marcou a consulta e entrou na sala mais realista do que nunca foi na vida, nem quando contou dinheiro da comida para pagar a prestação do apartamento.
Doutor Giordano o recebeu com simpatia e num movimento corporal se sentiu arregaçando as mangas para começar o trabalho. Seguiu com a cirurgia e o tratamento previsto. Não sabia quanto tempo tudo aquilo duraria, mas faria o que tinha jurado quando se formou, tratar corpos, fazer o melhor que podia, mas saber que há algo maior do que ele.  Sabia da sua impotência e era isso que possibilitava que ele tivesse o olhar de sinceridade que fez Roberto o escolher. Vida e Morte são maiores do que qualquer Ser Humano.
Duas semanas de hospital. Sete meses de tratamento. Corpo sem energia vital, dando sinais de final de ciclo. Duzentos e trinta e cinco dias depois, o óbito aconteceu na sala da casa do pai de Roberto, que o acompanhou durante todo o processo.  Velório, enterro, missa de sétimo dia, um mês, um ano. O luto acabou, a vida continuou.

Simone de Paula – 16/02/2017

Conto inspirado na Lua em Escorpião do céu e um mapa astrológico que mostra uma mulher coroada por um Plutão no Ascendente. A morte não ronda, mas ela está sempre entre nós através dos seus referentes. 


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