sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

As flores do meu jardim

Um dia, há cerca de dez anos, um paciente me disse uma frase que não esqueci. Ele falou que a amizade é como um jardim que deve ser cuidado diariamente. Certamente as palavras exatas eu nem lembro mais, mas o sentido principal se fixou. Aquilo ressoou nos meus ouvidos e ativou minhas memórias e meus planos futuros. 
Lembrei das minhas amizades na infância e adolescência. Pensei nas pessoas que até hoje fazem parte da minha vida. Considerei que eu deveria investir mais tempo naqueles que estão perto e que eu quero manter assim. 
Olhei para minha sobrinha, com suas amigas de quatorze, quinze anos e a amizade 'para a vida toda' que se imagina naquele momento. Eu sei que isso muda e mudará sempre. 
Afinamos nossas relações com a maturidade ou economizamos contato para não ficarmos sós? 
Num jardim escolhemos as sementes que queremos plantar e cuidamos para que a rega e a poda funcionem como o melhor estímulo para a planta. Excesso ou falta de sol e sombra também interferem na melhor qualidade e beleza delas. Penso que as amizades funcionam quase assim, mas exigem também um tanto de sorte para que dêem certo. 
Somos colocados no mundo social sem muito controle ou escolha. Quando pequenos a escola, quando maiores o trabalho. Tanto em um ambiente quanto no outro, escolhemos ou somos escolhidos e isso por uma contimgência. O estilo conta à medida que nos identificamos com algumas marcas que queremos exibir para nos enquadrar em algum grupo. Depois, escassos ficam os estudos, exaustivo fica o trabalho, criamos família e deixamos de lado aquele estado de graça que tivemos pelos bons momentos com aquelas pessoas queridas que passaram pelo nossa vida.  
Todo cuidado é pouco. A raíz pode ser forte, profunda, mas as folhas e pétalas são delicadas e a mão do cultivador deve levar isso em consideração. O vínculo nem sempre suporta os solavancos que uma relação familiar, estruturada como um edifício em alvenaria, suporta. 
Tenho e tive muitos amigos. Reservo um tempo para eles, mas como meu jardim é muito grande e variado, nem sempre dou o máximo para cada um, mas pelo que sei, estão todos bem vistosos, mesmo querendo um pouco mais de contato, como eu mesma quero. 
As estações do ano passam pelo meu jardim. As flores e plantas que estào ali continuambelas. As que se foram, já deixaram uma marca nessa terra. 
Ser jardineiro exige talento e dedicação, não basta ter terra, tem que adubá-la, plantar, cuidar e deixar descansar quando necessário. Cuiide mais do seu jardim.

Simone de Paula - 24/02/2017

Conto-palpite para inspirar a amizade, colocar flores e vida nos terrenos mundo afora.
Hoje é aniversário da minha sobrinha e afilhada, uma pessoa querida, doce e gentil que tem muitas amizades e isso se estenderá pela sua vida. 

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Condutor

sentada no ônibus, entretida na leitura
menina criada no Paquistão, mundo que não sei
sol, barulho, corpo suado no outro, desconhecido, cansado já pela manhã

um senhor está bem na minha frente
é calvo, tem pele dourada amarela, brilhante
seu rosto esticado se apoia no braço que segura a alça enquanto balança nas ruas

deve ter setenta anos e está ali, com uma pasta azul
ofereço meu lugar

 - o senhor gostaria de se sentar?
 - se você me conceder, sim
 - por favor

o caminho foi longo, quente, fiquei por ali em pé, me espremendo
quase no meu ponto final a garota ao lado dele no banco se levanta
me sento 

ele sorri para mim

 - você vê, quis o destino que estivéssemos juntos aqui
 - verdade, falei
 - fico encantado como um ônibus pode reunir bons corações


eu também, pelo caminho.

Maria Laura

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Corte Profundo

Era tudo verdade. O diagnóstico, a doença, os sintomas.  Roberto nunca imaginou que seria atingido por aquele míssil. O médico foi direto, indicando o tratamento mais adequado. Já olhava a agenda para a cirurgia quando Roberto o interrompeu perguntando o que aconteceria se ele não se tratasse.
Doutor Giordano estava acostumado com essa pergunta, escolher uma especialidade em que os casos, em sua maioria, denunciam a morte, não é algo fácil. Ele não saberia dizer como escolheu, mas sabe que é o que gosta de fazer. A personalidade determinada talvez não conviva bem com especialidades de tratamento preventivo e de longa duração.
O câncer começou num órgão importante, mas não se podia ainda determinar qual. Era preciso mais exames. O tumor nasceu em algum ponto, por um motivo indeterminado. Se desenvolveu e já tinha avançado. Era preciso cirurgia e tratamento.  Genética ou algum acidente mal curado sobre um corpo incapaz de restaurar tudo? 
Roberto olhava com esperança. Será que ele poderia viver menos tempo, mas sem sofrer?  Queria alguma resposta que trouxesse alívio, e de preferência acompanhada de um café e um brigadeiro. Ele queria afeto, acolhimento, carinho, colo, mas ali não receberia isso.
Doutor Giordano, como um ser humano bem treinado, o alertou do agravamento dos sintomas no caso de adiamento do tratamento. Foi sintético, sem muitos detalhes de como tudo aconteceria, apenas se concentrou em dizer o que se passaria.
Medicina alternativa. Tratamento espiritual. Reencontro com Deus. Sair do emprego. Realizar os sonhos deixados para trás. Viajar para conhecer o lugar mais desejado no planeta. Rever parentes e amigos. Gastar todo o dinheiro guardado. Viver.
Roberto tremia, tentava falar qualquer coisa. Queria mesmo ficar calado, porque não existia nada que pudesse reverter aquela notícia. Mas se ele não fizesse nada, nem falasse, o que ocorreria? O seu destino estava decretado e a hora adiada tinha chegado. Respirou fundo e pediu ao médico para ir para casa, processar a notícia.
Doutor Giordano se levantou, estendeu a mão, olhou nos olhos de Roberto e disse em tom firme que o tratamento devia ser feito, mesmo que digam o contrário, pois a medicina se desenvolve diariamente para isso. Continuou afirmando que mesmo o incurável pode ser tratável. Seguiu até a porta do consultório e foi gentil na despedida. Quando voltou para a sua mesa, sentiu o peso da morte que rondava aquela sala há muitos anos. Olhou pela janela e desejou alguma forma de aliviar aquilo. Mandou uma mensagem para um amigo, marcando uma cerveja naquela noite. Ele seguia a vida assim, uma bebida com papo furado e começava tudo de novo no dia seguinte.
Cirurgia, quimioterapia, radioterapia, perda de cabelo, emagrecimento, isolamento, dependência, tristeza, rotina de hospitais, cama, cova e caixão.
Roberto passou alguns dias pensando. Falou apenas para o pai, idoso, mas a pessoa mais sensata que ele conheceu na vida. O pai chorou e sugeriu que procurasse uma segunda, terceira opinião. Disse que não se escondesse, que falasse com as pessoas, muita gente passa pelo mesmo e facilita o processo. Assim foi. Segunda e terceira opiniões semelhantes, mas nenhum dos outros médicos olhou nos olhos de Roberto com tanta sinceridade quanto o primeiro. Naquele olhar não havia promessas, apenas um caminho duro, mas possível. Ele resolveu voltar lá. Marcou a consulta e entrou na sala mais realista do que nunca foi na vida, nem quando contou dinheiro da comida para pagar a prestação do apartamento.
Doutor Giordano o recebeu com simpatia e num movimento corporal se sentiu arregaçando as mangas para começar o trabalho. Seguiu com a cirurgia e o tratamento previsto. Não sabia quanto tempo tudo aquilo duraria, mas faria o que tinha jurado quando se formou, tratar corpos, fazer o melhor que podia, mas saber que há algo maior do que ele.  Sabia da sua impotência e era isso que possibilitava que ele tivesse o olhar de sinceridade que fez Roberto o escolher. Vida e Morte são maiores do que qualquer Ser Humano.
Duas semanas de hospital. Sete meses de tratamento. Corpo sem energia vital, dando sinais de final de ciclo. Duzentos e trinta e cinco dias depois, o óbito aconteceu na sala da casa do pai de Roberto, que o acompanhou durante todo o processo.  Velório, enterro, missa de sétimo dia, um mês, um ano. O luto acabou, a vida continuou.

Simone de Paula – 16/02/2017

Conto inspirado na Lua em Escorpião do céu e um mapa astrológico que mostra uma mulher coroada por um Plutão no Ascendente. A morte não ronda, mas ela está sempre entre nós através dos seus referentes. 


Rapto

ela relata que a raiva que sente, esconde
diga: grito!
nada

e voltou relembrando a fragrância ainda quente da agressão
dormiu aliviada porque se deu conta dela
de lado, um pouco atrás, rosnando

pescoço, cabeça, corpo, pulso, fora

não sabia que sabia quem estava aí
devidamente apresentadas,

entrelaçaram-se, em flechas

Maria Laura

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Retiro de Yoga


Saímos de São Paulo com um dia nublado. A previsão do tempo: só chuva em todo litoral.Mas nosso destino era um retiro de yoga e o clima não iria interferir muito.
Chegamos em Ubatuba ainda de dia, pois escolhemos ir cedo e ainda almoçar no caminho. Foi uma delícia. Eu e a Cris ,muita conversa sobre a gente e todo mundo que a gente conhece.  Fomos direto para a pousada e dali para nosso quarto. Descansamos um pouco sob o som da chuva incessante e o ar fresco, num lugar rodeado de mata. Era quase inverno, estava frio.
O primeiro encontro com o grupo aconteceu ao anoitecer. Alguns ainda não tinham chegado, mas a maioria já estava reunida, com seus cobertores e ansiedade, para um mergulho profundo, de corpo e alma. Nos apresentamos, ouvimos e cantamos mantras, respiramos e já nos sentíamos mais leves antes do jantar.
Tudo ali estava silencioso. Éramos em poucos e só nós. O único barulho era a chuva que caía e parava. Nossa conversa podia ser num tom baixo, num ritmo mais lento. Todos falavam, todos ouviam.
O jantar foi delicioso. A comida vegana saborosa, leve e colorida. Os chás quentinhos.. Boa noite e fomos dormir.
No dia seguinte, acordamos cedo e seguimos para a primeira prática do dia. Uma coisa que adoro é fazer yoga em jejum, bem de manhãzinha. Fizemos muitos exercícios, sem pressa, com permanência e variação, o tempo dali era todo nosso. Depois de três horas, relaxados, seguimos para o café-da-manhã. Comemos, conversamos, rimos e olhamos a chuva, incessante. Tínhamos algum tempo livre até nos reencontrarmos para a palestra sobre um dos chakras Assim, foi, sem expectativas e ben surpresas. O almoço encantou pelas cores, aromas e sabores. Logo depois, resolvemos fazer uma breve caminhada, aproveitando a chuva que tinha parado. Em menos de meia hora, o céu fechou, mais uma pancada, era hora de ler, dormir, descansar . No final da tarde, mais uma prática. Longa, lenta, revigorante.  Num sábado chuvoso na praia, veio a surpresa, a energia acabou. A prática seguiu no escuro, com luz de velas. Éramos guiados pela voz suave do instrutor e pelos nossos sentidos. O corpo ali tomou uma proporção agigantada, era só ele e o espaço. As sensações foram tão intensas que não há muito como descrever. Eu não estava de olhos fechados, mas minha visão não conseguia amparar meu desequilíbrio. Terminamos a prática e entramos em um dos relaxamentos mais profundos que fiz na vida. Estávamos todos tão introspectivos e colados em nós mesmos que no final ninguém se moveu por quase meia hora. Jantamos, conversamos e rimos, era um grupo conectado, carismático, simpático.
Após uma noite de sono profundo, uma nova manhã de prática, desjejum e naquele domingo a gente conseguiu chegar até a praia, pois a chuva tinha parado. Caminhamos, molhamos os pés, conversamos. Eu e a Cris estivemos bem juntas naquele final de semana, ela fica mais inteira, mais relaxada. Talvez ela não perceba o quanto esses retiros deixam ela mais tranquila, mas eu, que a conheço desde que nasci, percebo.
Voltamos da praia,  tomamos banho e colocamos as malas no carro. Seguimos para o almoço e um fechamento do retiro, com conversas, mantras, presentes. Voltamos para São Paulo debaixo de chuva, mas tranquilas.
Somos em três, eu, Cris e Dani, mas a Dani raramente vem. Quem sabe no
ano que vem faremos uma viagem juntas, irmãs e mamãe, precisamos disso na vida adulta.

Simone de Paula - 09/02/2017



Conto-relato de um retiro de yoga em Itamambuca, que aconteceu no primeiro final de semana de junho de 2016, com o professor Rudra, na Pousada Samudra

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Lua

abriu a janela, mirou a lua, cheia
lembrou de um sonho:

estou apaixonada, mas não posso vê-lo

Maria Laura

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Caminhos Cruzados



Acordei pensando: por que nossos caminhos são cruzados e nós não nos cruzamos?
Olha eu, dizendo que acordei pensando, como se eu não pensasse nisso o tempo todo. Melhor começar de novo, mudar o verbo.
Acordo pensando... blá blá blá.... 
Eu sei que você vai me dizer que eu deveria sair dessa de ‘pensar’ e entrar logo no agir. Pra você, que tá do lado de fora da situação, é fácil julgar. Porque afinal, quem vê de fora, fala fácil e não precisa agir. Nem é um lance de empatia (coisa que tá na mora hoje em dia), mas é não ter aquela barra limite entre a vontade e a realidade.
E sabe o que mais me deixa com raiva? Que você (o dos caminhos cruzados ou o que julga) me impede de ser eu mesma na cena, porque, como disse acima, só me sobra o pensar.
Ai eu fico sem a tristeza, sem o amor, sem a vivência, sem a dor. Fico sem nada? Não, o pensar é meu e ninguém me tira. A não ser o tédio, esse é ótimo amigo para te fazer ter preguiça de pensar, porque quando se pensa insistentemente a mesma coisa, isso chega num limite. Ou você desapega, ou você simplesmente não tem mais combustível para continuar. Nessa hora, melhor dormir.
Falando nisso, eu durmo, bem, feliz, cochilo sem muito preparo. Parei, encostei, dormi. Adoro dormir. Mas parece que se pensa, mesmo dormindo e isso faz a gente sonhar. Sim, eu sonho, não tanto quando umas amigas aí, que sonham uns sonhos lindos, longos, cheios de pedacinhos e depois colam tudo e contam, elas mesmas encantadas com o pensamento sonhado.
Esse papo me fez desviar a rota. Olha aí porque que não nos cruzamos, porque eu sigo em outra direção, porque penso, porque sinto tédio, porque desapego e nesse sem fim de conexões aleatórias, chego num ponto que eu girei 120 graus, fui em outra direção, desviei da questão.
Mas eu volto, insisto, fico sem ter o que pensar e lembro que tenho meu pensamento preferido da vez, você e os caminhos cruzados que não se cruzam. Isso é vício, só pode. Dizem que viciar é para os fracos. Nem tanto. Viciar é para os teimosos, insistentes, bravos, porque exige muito. Tem que ficar martelando num prego que já entortou ou tá entalado na parede, sem se preocupar se ainda tem porque martelar.
Você seria o prego ou a parede?  Porque eu, a viciada dependente, sou o martelo intermitente.  Pensando aqui, você é a parede: fixa, parada, rígida e intransponível, além de imutável. O prego é minha diversão, porque é o grude entre a ação e a estagnação, intercambia, une, mas mantém sempre a separação, cada um com sua constituição e sua função.
Nossa, quanta rima, só faltou o não. Bem, mas isso  eu já tenho. Mas pensando bem.....

Simone de Paula  - 03/02/2017