sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Chegadas e partidas... de ideais e sonhos



No consultório médico, ela ouvia mais uma vez as considerações sobre a impossibilidade de uma gravidez. Na realidade, estava no processo de fertilização há dois anos.
Não media esforços, pois o objetivo era aquele. Era apenas o avanço da ciência a serviço das mães que não conseguiam realizar esse sonho naturalmente.
Não se perguntava o que era tão fundamental naquilo, pois parecia óbvio que uma mulher quisesse ser mãe. Também não tinha definido quando seria a hora de parar de tentar.
Ver mulheres que tinham engravidado naturalmente era algo que a fazia remoer por dentro, enfrentando uma grande impotência de sua parte. Como poder olhar para a outra que tinha tudo aquilo que ela merecia.
Acreditava ter adiado a maternidade em função da carreira. Acreditava também que o corpo mais envelhecido produziria óvulos mais velhos e a concepção seria mais difícil. O médico confirmava todas as suas teorizações e garantia que o processo era possível, pois tinha muitos casos de sucesso e até em condições piores. Ele afirmava o que ela queria ouvir.
O tempo foi passando, o corpo se esgotando cada vez mais e ela não conseguia admitir que talvez essa não fosse a experiência dela nesta vida. Nunca lhe ocorreu que se tivesse que ser mãe, seria.
Num dia, desabafando com uma amiga do trabalho num café perto do escritório, foi interpelada por uma senhora mais velha, que estava sozinha na mesa ao lado, tomando um chá e lendo uma revista de fofocas. Ela olhou com carinho e disse ter ouvido tudo que ela tinha dito sobre suas desventuras e desilusões e perguntou por onde andava a sua mãe. Ela se incomodou, não gostava de estranhos intrometidos. Mas respondeu que estava na casa dela. E quis saber o por quê da pergunta.
A velha senhora respondeu que a mãe dela deveria ser incluída nesse processo. Dar colo à filha que estava impossibilitada de realizar um sonho, e principalmente lhe dizer que nem tudo na vida é possível. Que o tempo de parar e cuidar da vida que ela tinha, ao invés de querer fabricar a vida imaginada talvez fosse uma forma de felicidade ainda maior.
Diante de uma ‘lição de moral’, ela ficou furiosa, esbravejou, colocou tudo aquilo que estava preso na sua alma para fora. Deu o maior ‘vexame’ em público. Se acalmou, olhou para a velhinha e pareceu entender o que ela queria. A abraçou e agradeceu.
Saiu de lá direto para a casa da mãe e conversaram longamente. Deixou de lado toda a postura realizadora que tanto carregou durante a vida e viu que não precisaria mais dela. Aceitou que seu tempo tinha acabado, ou talvez nem tivesse existido.
Voltou ao trabalho, cancelou as consultas médicas, doou todos os livros que tinha comprado sobre o assunto. Agora era hora de deixar partir, processar a perda de um sonho, coisa pior do que a perda real, pois se cria tantas perfeições num sonho. Passou a olhar as mães com seus filhos, ou mesmo mulheres sozinhas, que podiam ou não ser mães. E notou que crianças crescem e as coisas seguem rumos imprevistos, impensáveis. E assim era a vida dela, sem filhos, num rumo imprevisto, impensável, mas o rumo que tinha seguido. 

Simone de Paula - 27/01/2017

sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Sonhos e devaneios

Toda noite era assim, sonhos e mais sonhos refletindo o mundo anímico permeado pelo desejo de amar que sentia. Mas, durante o dia, os devaneios chegavam a arrepiar de tanta agressividade. 
Na verdade queria aquilo que sonhava, mas nem ousava correr o risco de se machucar.
Adquiriu todas as formas de evitar a realização dos compromissos do amor. Inicialmente usou os excessos de drogas e álcool, atacando quem chegasse mais perto. Desdenhava quem olhava aquilo tudo com gravidade e se unia aos poucos que partilhavam da mesma aflição.
Depois, foi a vez das alergias na pele, especialmente braços e região peitoral. Isso refletia claramente o medo de ser abraçado, tocado, se fusionar com outro corpo. Tratou, não curou, mas engordou. A medicação baseada em cortisona acrescentou muito àquela silhueta já desgastada pela vida de fugitivo. Já estava completamente só, tinha chegado ao seu ápice. Mas, um exame de rotina, pedido pelo médico da empresa em função de uma viagem de trabalho, descobriu que seu coração poderia parar a qualquer momento. Enquanto ele imaginou que bastaria evitar o contato para não sofrer, deixou escapar o mais fiel amigo do amor: o coração. Ele se assustou. Não pode ir viajar, foi substituído de última hora. Começou mais um tratamento e dessa vez, o médico incluiu mais três atividades que deveriam ser feitas, caso contrário, relataria a gravidade da situação ao seu superior e ele provavelmente perderia o emprego. Agora, além da medicação, dieta e atividade física, ele deveria fazer acompanhamento psicológico, massagens relaxantes semanais e meditação diária. 
Ele baixou as taxas mais graves e se abriu para antigos amigos. Reencontrou um antigo amor, que tinha ficado pedido no passado e voltou a se olhar no espelho. Se viu mais velho, mais cansado, mas certamente, estava mais aberto. Agora, até o médico liberar, a vida era assim, de poucos sobressaltos, nada de recusas e muitas experiências suaves. 

Simone de Paula - 20/01/2017

Conto inspirado na frase: "Temer o amor é temer a vida e os que temem a vida já estão meio mortos.", de Bertrand Russel

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

As voltas que a vida dá

Eugênia tinha sido criada para ser assistente. Desde pequena, mesmo seguindo os mesmos passos dos irmãos mais velhos, não tinha o mesmo lugar que eles tinham em casa. Estudou, mas a mãe pedia para ela ajudá-la com as tarefas domésticas. Brincava na rua com os vizinhos, mas tinha hora para dormir e nunca saía sozinha com alguma coleguinha. Ia a parques e clubes, mas sempre acompanhada deles. Mesmo tendo algumas ideias de passeios ou brincadeiras, não era levada em conta, pois eles faziam valer a vontade deles. Eram unidos, os pais gostavam disso, pois os meninos tomavam conta dela. A mãe de Eugênia, dona Estela, não acreditava que a filha era muito esperta para o mundo, a achava muito pura, inocente, não saberia dizer quem é bom e quem é mau, e os meninos serviriam de escudo para ela.
Com 19 anos, Eugênia começou a namorar Eduardo, colega de faculdade. O namoro foi como dona estela esperava, com muito contato com a família e muitos planos para o futuro. Eduardo se encarregava de Eugênia, tanto financeiramente, como nas orientações para a vida. Após 3 anos de namoro, noivaram e prepararam o casamento. Eugênia se preocupava com vestido, louças e objetos de decoração. A mãe pensava na recepção após a cerimônia religiosa. O pai de Eugênia, só queria saber que horas teria que entrar na igreja levando a noiva e do vinho da festa. Tudo correu como planejado e Eugênia não teve que se preocupar muito com coisas mais complicadas e burocráticas, pois Eduardo sabia de tudo.
O tempo passou, os três filhos vieram, dois meninos e uma menina, como a mãe. Eugênia vivia bem, feliz, tranquila. Cuidava da vida do marido e dos filhos, organizava tudo e sabia que podiam contar com ela. Apoiava o marido nos problemas da empresa, o ajudava em lidar com as crises com funcionários ou com o chefe, auxiliava os filhos na lição e os preparava para a vida.
Eugênia, no alto dos seus cinquenta e três anos estava tranquila em casa, comemorando mais uma conquista do filho mais velho, João, que tinha trocado de emprego e iria morar fora, quando recebeu um telefonema chocante. Eduardo tinha sofrido um ataque cardíaco e tinha sido fatal. A surpresa foi tanta que nem as lágrimas caiam como de costume em situações de óbito. Já tinha perdido pai e mãe, mas o marido era tudo que ela tinha, era seu grande apoio na vida. Os filhos tinham a vida deles e ela se sentiu na maior solidão da sua vida.
Evidentemente Eugênia não sabia de nenhum trâmite em situações de óbito. Deixou para os filhos essas questões. Depois, algum tempo passou e foi Edson, o filho mais jovem, advogado, que cuidou do processo de inventário e herança. E foi nesse momento que todos se surpreenderam, pois Eduardo tinha feito um testamento com tudo muito especificado. Ele deixava os bens para a esposa e filhos. Tudo seria dividido como manda a lei. Mas ele tinha uma casa fora do Brasil, no Uruguai, herdada de um tio, que Eugênia nunca tinha tido conhecimento. E, essa casa pertenceria à Eugênia, que deveria ir viver lá, sozinha, criar uma nova vida para si. A casa do Brasil deveria ser vendida e dividida e essa renda, adicionada da pensão que ele deixara, seria o suficiente para ela se manter financeiramente. E, essa casa deveria ser deixada, na morte dela, para o primeiro neto que tivessem, não importando se fosse menino ou menina. O futuro da casa, caberia então ao novo herdeiro, ele não queria prever isso, só queria um destino novo para Eugênia. Ela se assustou, rejeitou a proposta, disse que não saberia nem como ir para lá. Edson disse que a ajudaria com mudança e tudo mais, mas ela não se via nem em outra casa no Brasil, quanto mais no Uruguai. Passou uma semana dormindo e comendo pouco, sem falar com ninguém, completamente aflita com a situação. O filho alertava que era preciso dar encaminhamento ao processo, pois o prazo expiaria e eles teriam que começar de novo e teriam novos custos um novo inventário. A filha Adriana, que não tinha se pronunciado ainda na situação, resolveu abreviar essa indefinição da situação. Comprou uma passagem para Montevidéu, para a mãe ir sozinha e conhecer o país, o bairro, a casa. Chegou e disse que era a única forma dela pelo menos realizar um pedaço do desejo do pai. Eugênia, que tinha amado muito o marido, entendeu que a filha tinha razão e aceitou finalmente. Todos a acompanharam ao aeroporto, mas dali era com ela. Outro país, outra língua, ela não saberia o que fazer sozinha. Mas foi, pensava em Eduardo ao seu lado o tempo todo. Brigava com ele por não ter contado nada, mas depois fazia as pazes. O manteve vivo para conseguir seguir essa viagem. Chegou, achou tudo muito simpático. Encontrou um motorista que tinha sido contratado pelos filhos para levá-la até Colônia do Sacramento, cidade onde estava localizada a casa. De Montevidéu, seguiu viagem por duas horas e quando percebeu o lugar, ficou encantada. Uma cidade pequena, com casas de pedra, ruas estreitas e um clima de filme. Soube durante a viagem que a cidade beirava o Rio Del Plata, que fazia divisa com Buenos Aires capital da Argentina. Se quisesse, em uma hora poderia ir até lá fazer um passeio. Parada no portão da casa, com a mala na mão, olhou tudo e sentiu novamente o amor que tinha pelo marido, aquele deveria ter sido o refúgio deles quando ele finalmente se aposentasse. Ela entendeu porque ele não tinha dito nada, pois seria um presente para a velhice. Caminhou até a padaria da esquina e perguntou por Pablo, que deveria ter a chave da casa. Ele a cumprimentou com muita afetividade e a acompanhou. Abriram o imóvel que estava vazio, mas muito limpo. Além das chaves, ele também entregou uma carta a ela, que tinha sido deixada por Eduardo no caso dela chegar sozinha. Dispensou o motorista, agradeceu Pablo, abriu as janelas, sentou-se no quintal gramado e abriu o envelope. Eduardo contava a história daquele tio de quem herdara a casa. Aquele tinha sido o ninho de amor dele e daquela que foi sua mulher por anos. Após a doença dela ele não quis mais ficar na cidade e se mudou para Buenos Aires e queria que um dos filhos do irmão ficasse com a casa. Como sabia que ele e Eugênia viviam muito bem, acreditou que o amor deles merecia ser homenageado e Eduardo concordava com o tio. Disse que deixou a casa vazia para ela decorar como quisesse que ela era livre e muito capaz de transformar aquele ambiente na casa dela, sem palpite de ninguém. Que ele queria que ela conversasse com ele quando tivesse dúvidas, mas que era para deixar o Brasil para trás e renovar sua vida ali. Os filhos a visitariam e isso seria ótimo, mas eles tinham a vida deles e não precisavam mais dela.
Eugênia respirou fundo, ficou horas olhando cada cômodo da casa e imaginando o que faria ali. Foi até a padaria e perguntou se Pablo tinha uma bicicleta, que ela queria conhecer a cidade. Circulou e já foi se reconhecendo ali, mais livra, vive e renovada do que imaginava. A noite caiu e ela ligou para o filho, dizendo que não voltaria ao Brasil. Pediu que se desfizesse de tudo, vendesse, doasse, o que fosse preciso. Que na assinatura da venda, ela queria uma visita dos três juntos para verem o seu novo lar. Estava mais segura do que nunca na vida.
Seis meses depois estavam lá João, Edson e Adriana acompanhada de Fernando, o namorado com quem morava e ainda portava uma bela barriga de cinco meses de gravidez. Eles já tinham recebido fotos da cidade, da casa, da nova vida da mãe, mas não imaginavam como ela tinha feito tudo sozinha. Ela assinou os papéis da venda da antiga casa e deixou com Edson uma procuração caso precisasse de mais alguma coisa. Mostrou que a casa tinha espaço para todos, mas que eles deveriam se misturar, pois era a casa dela e eles viriam sempre como visitas, hóspedes.  Ficaram por ali cinco dias. Aproveitaram o tempo com a mãe e ela com eles, mas ela já estava ansiosa para voltar a ficar só. Tinha descoberto os prazeres de ter sua vida só para si.
Nasceu a neta Gabriela, que ela só conheceu quando foram lhe visitar três anos depois. Já disse para a menina que aquela casa seria dela quando crescesse e que poderia morar ali se quisesse.  Mesmo com o contato constante com os filhos, Eugênia não pertencia mais ao antigo mundo. Ela falava mais o espanhol do que o português costumeiro. Tinha novas amigas e novos romances. Cuidava da casa e de si de forma diferente, era outra. Se deu conta que não lembrava de Eduardo com tanta frequência, que ele não fazia mais parte daquela nova Eugênia e nem da vida no Uruguai. Ele organizou tudo para poder deixá-la só para si e conseguiu.  Ela ainda o amava, mas agora de outra forma, mais branda, mais serena, como alguém que fez parte da nossa vida, causou uma revolução, mas que depois do caos, não precisa mais permanecer ali, pode deixar de existir, pois foi só o principio da mudança.

Simone de Paula  - 09/01/2017


Conto inspirado no filme argentino ‘Dos Hermanos’ , de Daniel Burman

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

O detetive inteligente



Arnaldo tinha uma vida bem organizada. A rotina engessada não incomodava, dava garantias. Cedo começou, cedo conquistou. Agora era só cuidar da manutenção. Via a vida de forma lógica, um engenheiro.  O que ele não esperava é que seu sono, por sonhos insistentes, o tiraria dessa sistemática rotina.
Não sabia bem em que momento da noite acontecia, só sabia que os sonhos o acordavam. Não lembrava bem sobre o que eram, mas tinha algo que o perturbava a ponto de o despertar do sono restaurador costumeiro. Precisava achar a razão dessa desordem.
Primeiro perguntou à esposa se ela notava algo diferente no seu sono durante a noite. Ela, que dormia também muito bem, dissera que não via nenhuma atividade, nem terrores noturnos, nem sonambulismo. Para ela, ele continuava dormindo bem como sempre. Mas ele insistia, pedindo que ela o ajudasse a saber se existiram barulhos na rua ou no apartamento de cima, cujos vizinhos tinham mudado recentemente. Para ela, a rua continuava quieta e os vizinhos não perturbavam.
Arlete, a esposa de Arnaldo, já estava acostumada, quando algo não ia bem, ele a acusava, afirmando que ela não era atenta ao que acontecia com ele. Pedia mais atenção, apoio, cuidado. Ela realmente não prestava muita atenção aos excessos emocionais que ele apresentava quando algo saía do controle. Não era uma questão de cuidado, era simplesmente a vida, que não funcionava como o relógio cuco que badalava na sala de estar de meia em meia hora, pelos quinze anos em que estavam casados.
Ele entrou numa nova fase, assumindo o caráter investigativo. Pegou seu caderninho de anotações e deixou ao lado da cama e passou a anotar os fragmentos dos sonhos que lembrava.  Percebia que tinham algo comum, ele se sentia roubado. Literal como qualquer pessoa sistemática, Arnaldo resolveu cuidar melhor das finanças na empresa em que trabalhava. Suspeitou que pudesse estar sendo passado para trás por alguém. Trabalhou durante algumas semanas até mais tarde e pegou um pequeno deslize no seu trabalho, ele não tinha sido tão rigoroso em um determinado período. Não lembrava o que acontecera, mas deixou escapar algo e se sentiu mal por isso. Não disse nada a ninguém na empresa, mas desabafou com Arlete, que não notou nada tão grave no ocorrido.
Mas os sonhos continuaram e a perturbação de Arnaldo aumentou, afinal, o que era essa insistência? Resolveu investigar um pouco mais, foi ler sobre sonhos e o que eles queriam dizer. Aprendeu um pouco, resolveu que já tinha dominado o que necessitava desse assunto. Ele agora se dedicava durante o dia ao trabalho com mais rigor. À noite, chegando em casa, lia sobre sonhos e fazia conjecturas sobre o que tinha sonhado. E, indo para cama, fazia todo um preparatório para dormir bem, tomando diariamente chá de ervas, e deixando o bloquinho bem disponível para anotar o que tivesse sonhado. Aproveitou e colocou o abajur ali, para ser ligado ao acordar e assim não esquecer o que tinha vindo durante o momento do sonho. Ele realmente se dedicava a ele mesmo.
Arlete acordava sobressaltada, com as atitudes de Arnaldo ao ser tomado por um sonho. Ele agora era o perseguidor dos sonhos, pois não poderia deixar nenhuma informação escapar. A paciência dela diminuía e a vida deles se transformou nessa maratona investigativa. Poucos programas sociais, poucos assuntos que não se centravam no problema de Arnaldo.
Arlete resolveu entrar na aula de dança de salão, coisa que sempre quis fazer, mas Arnaldo não queria. E, aproveitou que ele chegava do trabalho e mergulhava nos livros, para escapar e poder realizar esse desejo. Ela dançava três vezes por semana, se sentia bem. Arnaldo não se importava muito com isso, acreditava no relacionamento livre, em que os dois deveriam ter momentos para fazer o que quisessem. Arlete queria mostrar os passos novos de dança quando chegava em casa, mas Arnaldo não estava muito interessado. Olhava, mas não a via dançar.
Num jantar em que estavam juntos, Arnaldo disse para a esposa que os sonhos continuavam mostrando que ele estava sendo roubado. Ele começou a se sentir ameaçado por isso, pensando que talvez a casa estivesse sendo vigiada, que algum ladrão entraria a qualquer momento, ou pior, que o dinheiro do banco sumiria. Respondendo prontamente, ele aumentou o sistema de segurança da casa e criou uma relação mais próxima com o gerente da conta, para ter um aliado dentro do banco. Esse novo sistema atrapalhava Arlete, pois ela perdia tempo na rua desativando o tal alarme. Além dos possíveis bandidos, ela também tinha sido colocada para fora de casa.
O tempo passou, os sonhos insistiram. Arnaldo desistiu de investigar. Apresentava um semblante cansado, desanimado. Os cabelos brancos apareceram e ele mostrava menos interesse em tomar conta dos mínimos detalhes do trabalho da equipe. Um dos colegas de Arnaldo, durante o cafezinho habitual, comentou, de gozação, que ele parecia um homem desquitado, pois estava com cara de mal-amado.  Isso deu a pista que faltava para Arnaldo, o negócio era com Arlete. A cabeça dele começou a rodopiar, teve certeza que ela estava tendo um caso com alguém. Ela andava mais arrumada, se maquiava, estava mais magra, usava salto com mais frequência. Era isso, ele estava sendo traído. Mas, como se considera um homem da razão, não quis abordá-la sem provas, decidiu contratar um detetive, afinal, Arlete podia notar alguma mudança na conduta dele. Não perguntou aos amigos, não queria passar por corno, mas achou na internet uma agencia de investigação. Marcou uma reunião com Otávio Júnior, o investigador particular indicado para os casos extraconjugais. Na conversa, quando perguntado sobre a rotina da mulher, não sabia bem ao certo o que ela fazia durante toda a semana. Existiam muitas brechas de tempo sem que ele pudesse indicar o paradeiro dela. Otávio Júnior o tranquilizou, dizendo que descobrira tudo e o informaria. Arnaldo ficou satisfeito com a postura do investigador, que não falou muito, mas fez as perguntas certas para ele.
Três semanas se passaram e nenhum telefonema do detetive. Arnaldo ligou para ele, mas não conseguiu falar, deixou um recado. Arnaldo foi se incomodando, pois ligava todas as tardes e nada. Como não tinha pagado pelo serviço, decidiu que daria uma canseira nele também quando fosse acertar o pagamento, na entrega das provas.
Às noites, chegando em casa, Arnaldo observava Arlete nos mínimos detalhes, percebia que ela estava cantarolando com mais frequência, com o olhar perdido em devaneios, sem se importar mais com ele. Para chamar-lhe a atenção, ele batia portas, perguntava sobre tudo, estava furioso com a atitude de desinteresse da mulher. Resolveu investigar por conta própria, remexeu nas coisas dela, não achou nada muito significativo. Olhou na estante, alguns livros novos, mas nada demais, só assuntos de dança. E ele começou a imaginar que deveria ser alguém da escola de dança, na certa algum garotão, professor, que fazia graça com todas as alunas. Numa atitude astuta, segundo ele mesmo, resolveu acompanhá-la um dia na aula. Ela topou em maiores constrangimentos, ele ficou cismado, mas não falou nada. Foi, viu a aula, gostou, mas sentiu muito ciúmes dela, dançando, solta, rindo. Percebeu que nunca tinha sentido tanto ciúme assim, nem quando namoravam e ele tinha medo do Pedro Paulo, o vizinho de Arlete que jogava futebol e chegava suado dando beijinhos nela todas as vezes que estavam juntos.
Foram para a casa e no dia seguinte Arnaldo ligou para Otávio Júnior logo pela manhã, perguntando da investigação. O detetive, que nesse dia atendeu, disse que não tinha encontrado nada, passou a rotina completa dela por email e disse que ele devia apenas os custos gastos durante o trabalho, com gasolina e material de impressão fotográfica. Arnaldo descansou ao ouvir isso, pagou o que devia ao investigador e chegou em casa com flores para Arlete. Ela recebeu, agradeceu, mas nem colocou em vaso. Ele se ressentiu, queria uma festa por estar dando flores a ela, e ela nem se importava. Pediu mais atenção, como um menino mimado, e ela deu, colocando o vaso na mesa durante o jantar.
Os sonhos continuavam e agora tinham um caráter mais forte, mais intenso, com assaltantes frente a frente com Arnaldo, com armas na mão, facas, as ameaças ficaram mais violentas. Arnaldo não aguentava mais, ele precisava ver com os próprios olhos essa rotina da Arlete.
Na manhã seguinte, saiu como normalmente para o trabalho. Chegando ao escritório, disse que iria a uma reunião na parte da tarde e aproveitaria para almoçar na rua. Saiu sem levar muitas coisas, foi de carro até a sua casa e ficou olhando para a porta, esperando qualquer movimento de Arlete. Foram cerca de duas horas esperando, quando viu um carro parar na porta, de lá desceu um homem, que tinha um jeito familiar, mas daquela distância ele não conseguia dizer quem era. O homem tocou a campainha e foi recebido com beijos e abraços. Arnaldo ficou em choque. Não sentia raiva, só medo, pavor, ficou atordoado, desesperado. Arlete fechou a porta e seguiu no carro daquele estranho, ou melhor, daquele sabes-se lá quem. Arnaldo, num ato impensado, seguiu os dois. Pararam há três quadras dali. O lugar era conhecido, era perto do escritório de Otávio Júnior. Nessa hora Arnaldo teve um estalo, era o detetive. Viu o casal sair do carro e subir para a sala comercial que ficava no décimo andar. Arnaldo seguiu-os, sem nem pensar o que iria dizer ou como fazer.  Queria chorar, queria gritar, não sabia o que fazer, não queria perder Arlete, mas queria matar aquele desgraçado que tinha roubado a sua mulher. Chegou na porta e a esmurrou com toda força que tinha. Otávio Júnior abriu a porta assustado, sem saber o que ou quem poderia ser. Arlete se sentou como se fosse uma cliente. Quando ele abriu a porta e viu Arnaldo, disfarçou, fingindo surpresa, como saudaria um antigo cliente. Arnaldo saiu de primeira dando um empurrão e um soco na cara do rapaz. Olhou para Arlete, pegou no braço dela e saiu a arrastando pela sala. Não disse nada, não tinha o que dizer. Chegaram em casa, ele chorou, chorou a noite toda. Arlete ficou na sala, dormindo no sofá, sem querer olhar na cara dele.
No dia seguinte, pela manhã, ela preparou o café e ele se sentou para conversarem. Ele perguntou sobre o porquê da traição e ela disse a verdade, porque ele tinha se ausentado demais.  Ele não conseguia entender e ela não se preocupava com isso, apenas queria dizer a verdade, não queria mentir, porque ele era parcialmente responsável por aquilo, primeiro, por deixá-la tão sozinha por tanto tempo, preocupado com as mínimas coisas da vida dele, incluindo os sonhos perturbadores. E segundo, porque ele colocou aquele homem no caminho dela, afinal, ele tinha contratado um homem para olhá-la, ouvi-la, acompanhá-la, durante todo o tempo que ele não estava lá. Se ele quisesse culpar alguém de traição, deveria começar por si mesmo, depois poderiam conversar sobre o caso.
Arnaldo não aceitava, continuava reto e rígido como sempre. Mas também percebeu que amava muito aquela mulher, que seria incapaz de deixá-la, mas também incapaz de perdoá-la. Teria que conviver com a desconfiança perturbadora dos sonhos para o resto da vida.
Não passou pela cabeça dele perguntar o que ela queria. Ele ficou no quarto, durante todo o dia, pesando o que ele faria. No final da tarde, Arlete entrou e anunciou que ela passaria um mês fora, na praia, com a tia, para pensar o que ela queria fazer. Ele se surpreendeu, pois nem tinha se dado conta de que um casamento é feito de dois e se ela quisesse ir embora, podia, não dependia só dele. Ele não tinha como dizer sim nem não para o caso. Pediu que ela ficasse, ela disse que não, mas que voltaria.
Ele pensou, sentiu falta, imaginou-se sem ela. Ela pensou, sentiu falta, imaginou-se sem ele.
Ao fim do período de recesso, ela voltou para casa e tiveram a conversa mais franca da vida deles. Todas as verdades foram colocadas na mesa, os desejos, os medos, as dificuldades, a paixão. Resolveram retomar o casamento, mas com novas regras, num novo acordo. Arnaldo deveria pensar que a vida deles não era um roteiro. Além disso, ele não era o personagem principal e ela coadjuvante. Deveriam ter papeis com a mesma proporção ou não seria mais a história deles. 
Ele se deu conta do quanto ele pensava na vida só pelo ponto de vista dele. Foi difícil, se esforçou, se adaptou, não ficou perfeito, mas ficou melhor.
Numa manhã de domingo, enquanto tomavam café juntos, Arnaldo disse a Arlete que ele não sonhava há mais de um mês, que toda aquela situação reformulou a mente dele. O maior medo foi vivido e agora ele não precisava mais se proteger disso.

Simone de Paula - 06/01/2017




Inspirado na vida cotidiana de casais e no filme 'Um corpo que cai', de Alfred Hitchcock