sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Os cacos colados

Ela sempre acreditou no amor. Pensava que todos tinham a capacidade de amar. Vislumbrava encontrar aquele que seria seu par. Viveu muitas histórias. Nunca desistiu. 
O primeiro amor foi juvenil, terno, um sopro de esperança no coração. Na impossibilidade de se mesclarem, de desenvolver com ele a tal esperança que ela tinha descoberto, se afastou . De longe o olhava e fez um belo mosaico num porta-joias de madeira. Na época não tinha joias para aquela caixinha, mas a manteve no criado-mudo por um tempo, como lembrança daquele sentimento bom. Uma amiga de escola comentou que queria um baú para esconder seus pertences mais íntimos e a caixinha era perfeita para isso. Sem hesitar, ela presenteou a amiga. Notou na alegria daquela menina-moça a certeza de que tinha feito a coisa certa.
Tranquila, desavisada, conheceu o que ela realmente chamou de primeiro amor. Não veio como o anterior, pelo contrário. Um susto, uma recusa, um sentimento insuportável de ser posse de alguém que nem sabe que possui. Como alguém pode sentir vergonha em amar? Ela pôde. Mesmo diante de tudo isso, sentiu a satisfação de ser enfeitiçada. Mas aquele amor foi tão arrebatador que ela decidiu não largá-lo para o resto da vida. Ela acreditou nisso. Tola, romântica, jovem demais. O tempo passou, a distância chegou e ela sofria quieta, trançando os longos cabelos lisos e tricotando um cachecol para o próximo inverno. Fez frio e ela protegeu seu pescoço e sua cabeça para se manter aquecida. Seu coração estava sempre quente, pulsante, porque mesmo triste, ele batia. 
Uma nova primavera, um novo amor, mais tranquilo, vindo com a amizade própria dos momentos utópicos e heroicos que todos vivemos aos 20 anos. Ela tinha o mundo para conhecer e ele era uma fatia desse mundo. O romantismo deu lugar ao idealismo. A troca de ideias trouxe para ela a noção do que importava naquele outro, em um homem. Ele complementaria a intensidade do anterior? Um trouxe o fogo o outro veio com o ar. Ela respirava, suspirava, sufocava, ficava sem ar. Os destinos que tinham se cruzado se desenlaçaram e ela mergulhou no cinema, na colagem de imagens emolduradas nas capas de caderno, embaladas pela musica que permitia sofrer e chorar e rir e dançar. Era uma época tão agigantada de mundo que as possibilidades se multiplicaram e ela sentiu a beleza da juventude em seu corpo, sua pele, seus olhos e ouvidos, sua boca e mãos, como se nada pudesse abalar aquele sem fim de pulsante exuberância. 
E então, o giro parou. A vida ficou em suspensão. Ela se aquietou. As tardes passavam e ela produzia alguns bordados para preencher o tempo que parecia vazio. As linhas coloridas no tecido branco, preso ao bastião antigo, permitiam criar cenas e cenários diversos. O mundo das imagens era interpretado através daquelas  formas.  Ela projetava o futuro sem saber que o fazia. Montou um príncipe, uma lagoa, um sapo, um cavalo branco, uma fada, uma floresta, uma choupana e pássaros, muitos; e árvores, diversas. E sol, e lua, e planetas, e estrelas. E o céu, e a terra, e o mar, e o oriente, e o ocidente. O tempo passou, longo, seguro, ilustrado. A vida era um vai e vem, subidas e descidas, um balanço no parque e ela relembrava da alegria e da tristeza da infância. Como diz a sábia anciã: "a infância é o melhor e o pior momento de nossas vidas."  
Numa subida vertiginosa, ela se viu surpreendida pela eletricidade inimaginada. Entre risos e liberdade, as amarras se soltaram e o brilho intenso dos olhos retornaram . Não tinha futuro, só presente. E foi um belo presente . E dele vieram outros. Era como um natal feliz em que Papai Noel atende todos os desejos sem que o presenteado saiba que tenha desejado. Nos momentos solitários, seus desenhos agora seguiam com linhas e cores em folhas firmes de papel branco. Eram interpretados, entendidos, analisados. O campo mítico e místico enriqueciam seu mundo imaginativo e as palavras também entravam em cena, completavam seu universo decorativo. Mas todo esse presépio bem montado foi estilhaçado num trajeto entre mundos. Ela parecia carregar tudo bem estruturado naquela imagem bem planejada. Mas sempre tem aquele que vem e bagunça o castelo de cartas. O lobo mau derrubou as casas dos porquinhos e riu satisfeito do feito. Era hora de pegar os cacos e colar, montar de novo, como uma brincadeira de lego, tentando novas formas com os antigos elementos. Mas como é difícil não ver as rachaduras, os veios, as cicatrizes, agora que elas existem? De longe nem notamos muito, mas de perto, reconhecemos quem esteve ali e o que fez, e o oco e o vazio, que mostrou dela. Ela não podia e nem queria mais negar isso e seguiu. Colou menos, quebrou tudo que percebia estar firme há muito tempo, rígido, sem vida. Funcionou. Agora sim, novas formas possíveis , de um jeito mais verdadeiro e menos romântico., e mesmo assim, muito apaixonado. Ela ainda não sabia o que faria para restaurar a forma do seu coração, mas tinha entendido o propósito feminino do amor e de amar. Artesãs, restauradoras do coração. E, ela teve certeza, mesmo quebrando em mil pedacinhos, que valia a pena continuar colando, tecendo, traçando, pintando, bordando, envernizando, cerzindo aquele órgão vital, que tanto preenche isso que chama, que inflama, que espera, na mulher. 


Simone de Paula - 22/12/2016




Inspirado em Ana Figueiredo e Lêda Guimarães, que por meios distintos reafirmam o amor e o feminino.  Servem de musas, me.lembram de mim. 

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