sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A gente quebra a cara para parar de lascar os dentes

Adélia se considerava uma pessoa de bom gosto. A rotina incluía um dia de shopping por semana. Não eram compras de abastecimento doméstico, mas eram artigos de decoração ou reposição, seja para a casa, para o filho, ou para ela. Não percebia, mas se deixava em terceiro lugar. Pragmática, avaliava bem tudo que precisava para planejar as compras e ter mais eficiência, e voltar para casa com o melhor que podia. Isso geralmente dava certo, mas quando ela colocava no espaço prévio o item adquirido, não podia deixar de notar o brilho que faltou, que nunca teve, mas que foi almejado quando desejou aquilo que foi buscar. Ela não sabia muito bem o que podia ser aquele brilho, mas sabia que existia, porque o incluía nos pensamentos e planejamentos.
Uma das melhores amigas, Catarina, fez aniversário e lhe pediu dicas para a comemoração. Ela ajudou, estava animada para o evento. Chegou lá muito desarmada, sabia tudo que iria acontecer, os convidados, as comidas, até as músicas que o marido de Catarina tinha escolhido. Mas a vida nem sempre funciona como o plano, nem humano, nem divino, e um antigo amigo de Catarina, com quem ela tinha estudado, resolveu aparecer de surpresa. Eles tinham muito contato no passado, eram vizinhos. Recentemente tinham se reconectado pelas redes sociais. Catarina nem tinha comentado sobre isso com Adélia e ela nem esperava aquele homem maduro, barba cerrada, porte médio e semblante de macho bem domado, sem nenhum sinal de perigo aparente. Como manda a educação, foi apresentado para todos e não fez nenhuma menção especial a ninguém. Se entrosou com o marido de Catarina e a noite passou suave, exceto para o peito e a cabeça de Adélia, que disfarçava um estado insistente de atenção que ela não sabia direito de onde vinha. Sem dúvida Ernani a surpreendeu, não apenas porque era um homem que lhe chamou atenção, mas também porque não era esperado. Pois é, Adélia invertia as ordens, mudava as coisas de foco, o importante vinha depois, o mais óbvio também, ela usava a lógica de pensar primeiro o que numa realidade mais coerente, deveria ser pensado depois. Mas seu fluxo de pensamento seguia a bagunça das suas emoções e lhe dava o maior trabalho para controlá-los e realinhá-los. No final da festa ficaram os convidados mais próximos e Ernani veio comversar um pouco mais com as mulheres. Ele era um professor universitário um pouco frustrado com a carreira acadêmica. Sem muito jeito com o corpo, sem muita ousadia de afirmar o que pensa sem citações ou receios de ser questionado pelos pares, falava de coisas interessantes, mas ficava no terreno seguro das produções culturais. Adélia seria incapaz de perceber essa condição insegura de Ernani, afinal, ela mergulhava na eloquência dele e nos comentários bastante inteligentes sobre os assuntos comuns que estavam em pauta. Lembrem-se, a lógica dela deixava o óbvio para depois. Ela sabia que ele a encantava pelo saber, mas a atraia com algo a mais, que ela ainda não seria capaz de definir. Ernani a convidou para irem ao teatro na próxima semana e ela aceitou. Mas, no dia do encontro Ernani não entrou em contato e a frustrou. Ela ficou um tanto decepcionada, roeu as unhas, coisa que não fazia ha anos, comeu aquela barra de chocolate do filho, inteira, sofreu um pouco, era merecido naquele momento e voltou a dormir rangendo o maxilar. Acordou com uma leve dor de cabeça e pensou que estava se importando demais com um desdonhecido. Mas Ernani ligou durante o dia se desculpando, dizendo dos impedimentos dele. Ela aceitou as desculpas e marcaram novo encontro, que de fato aconteceu apenas depois de três ou quatros furos que ele deu com ela. O programa foi bom, um tanto menos encantador do que o esperado, mas as altas expectativas bem frustradas anteriormente, já não cabiam mais. Ela imaginou que estivessem num namoro, mas isso só aconteceu uns seis meses depois. Ela, com a cabeça muito organizadora, entendeu que ele era lento, inseguro em relação ao amor, precisava ir com calma e ela aceitou. Com o passar do tempo ela notava a constante opressão branda que vinha dele e apesar disso ela ainda sentia falta dele. Estava levemente apaixonada, mas também estava presa. E ainda não entendia em quê. O tempo passou, ela frustrada e apaixonada, ele presente e ineficiente. Ela tinha escolhido um item fora do padrào geral das suas escolhas. Será que tinha mesmo escolhido? Ela sabia que sim, mas ainda não identificava o que e por que. Um dia, estavam conversando sobre amigos, a vida de um e de outro e Ernani teve um acesso de ciúmes. Ela estranhou, mas ele ficou realmente furioso. Explicações, desculpas incabidas, mas utilizadas como forma de abrandar os ânimos, e ela ficou surpresa. Mais uma vez, sem saber de onde tinha saído aquele Ernani. Depois dessa cena, ela ficou mais ligada, mais atada, se colocando na mira dele. O ciúme foi aumentando e ela foi se prendendo e se privando. Ele brigava mais por coisas menores, do ciúme de outros homens ou amigas, passou para o ciúme do filho. Depois, passou para o ciume da casa e das compras. Chegou no limite, ciúme dos pensamentos, queria satisfação sobre o que ela estava pensando o tempo todo. O ranger de dentes dela aumentou, as dores de cabeça também, a ansiedade ficou permanente e uma leve taquicardia a acompanhava pelo dia, e aumentava nas noites em que se encontrariam. Ele disse que talvez o casamento fosse a melhor saída para ele se acalmar, pois vivia com medo de perdê-la. Ela ficava entre o gozo de ser tão necessária para alguém e o desespero de ser presa de um maníaco. Não via como deixá-lo, nem porque queria manter a delícia de pertencer e nem como se livrar do tirano. Era uma situação estanque por qualquer ângulo que ela olhasse. Foram seguindo com a ideia de casamento, pensando quando, como, onde. Numa noite quente de verão, depois de algumas cervejas, fizeram a lista de convidados e diante do nome de Orlando, marido de Catarina, Ernani teve o maior acesso de raiva até então já visto por ela. Ele empurrou móveis, gritou, segurou no seu braço, apertou seu queixo e mostrou tanta agressividade que ela não sabia se seria espancada ou ele acalmaria. Era um vulcão em erupção. Ela olhou nos olhos dele e viu a fúria que explodia incessantemente. O medo gelou seu corpo, ativou suas pernas e ela correu, fugiu, mas foi justamente o que fez a fera se mover mais forte dentro dele, que a agarrou e a esmurrou. Jogou-a ao chão, a chutou, cupiu em cima dela e saiu. Caída, doída, sofeu por uma hora sem se mexer, sem nem pensar, tudo parou. Quando voltou a respirar, sentir o corpo, o gosto de sangue na boca, a dor no quadril e nas pernas, lembrou de Catarina, de Orlando, do filho, da casa, da vida. Levantou do chão, pegou a bolsa e foi para a delegacia. Denunciou Ernani, passou todos os dados que tinha dele, voltou pra casa. O medo não estava mais com ela, num estranho sentimento de ter acontecido o pior, maior do que o imaginado. Naquela noite, passada em claro, ela lembrou um detalhe bem pequenininho que nunca  tinha sido bem percebido por ela, aquele olhar de fúria que ela viu em Ernani naquele dia era o mesmo do dia em que o conheceu. Da primeira vez era uma espécie de brilho, atraente e enigmático. Mas dessa vez, ele se revelou claro, sem mistérios, o ódio. Ela entendeu que de alguma forma buscava um além, um a mais, o ódio do incontrolável do mundo. A vida não seria a mesma. Sua percepção das coisas também não. Notou que começou a pensar em ordem diferente. Parecia que se colocava em primeiro lugar, o que ela queria antes, mas ainda carregava a memória das dores no corpo daquela surra recebida. As marcas roxas sumiram, mas a sensação da dor e da saliva gelada do cuspe em sua cara, isso ela jamais seria capaz de apagar. 

Simone de Paula - 02/12/2016



Nenhum comentário:

Postar um comentário