sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Um brinde

Momento de festa, comemoração, flashes, risos, música e muitos estrondos marcados pelos fogos que não param de estourar.
A gente comemora como a gente guerreia: bomba, explosão, gritaria. Uma simulação da batalha, onde o fogo não incendeia, o estouro não destrói e a gritaria não é de desespero. Ninguém foge.
A marca da diferença estaria no brinde? Ou esse serviria tanto ao sucesso da batalha quanto à conclusão de uma batalha pessoal?
Festas de final de ano são típicas desse tipo de comemoração.  Comemoramos o fim e o começo ao mesmo tempo. É a tesoura do tempo que corta uma superfície transformando um partido em dois inteiros.  Não brindamos sozinhos, mas em grupo e relembramos nesse compartilhar de taças, os antigos que promoviam brindes com belas batidas de canecas em que os líquidos voavam e se misturavam novamente para se ter certeza de que ninguém envenenaria ninguém.  De dois virou um só. Confiança no parceiro e no amanhã.
Diz a tradição que se brinda com champagne. O vinho espumante francês carrega a marca da vitória A região da produção era a mesma em que se coroavam reis e rainhas e a celebração era na base da festa , com fogos, risos e muita bebida.  Pobre champagne, que foi derrotada pelos produtores locais e domada pelo abade dom Perignon,  pois a fermentação da bebida fazia as rolhas explodirem e no processo de controlar aquele efeito, modificaram garrafa e rolha para o liquido permanecer mais tempo ali dentro.
Da produção ao brinde, o vinho segue sua jornada singular. O ritual mágico que não poderia ser deixado de lado. O símbolo é tão significativo, que causa o efeito de realeza no realismo pálido de meros mortais. No brinde, todo mundo é rei. E como bons reis, temos um mundo novo a conquistar. Quando a rolha pula, o líquido transborda e enche a taça, borbulhante, dourado, brilhante. Em um gole, o frisson no nariz, suavidade picante no paladar e a certeza de quem o estado de alegria terá invadido seu espírito.
Há cerca de vinte anos, eu produzia eventos para a marca Peugeot. Não há muito o que dizer de tudo aquilo, mesmo sendo histórias absurdas das pessoas envolvidas. Mas nosso stand era bem servido pela marca Möet Chandon. Meu ‘pretinho’ da manhã era uma taça de champagne. O dia começava com vinho gelado na boca, bolhas na mente e nuvens nos pés. Era delicioso, suave.e para quem vinha de produção de tv, não ter ‘luz’ para preparar por horas, era um deleite. Tudo passou, tudo passa.
Esse texto de hoje é o último de 2016, um ano em que cumpri um propósito de escrever textos todas as sextas-feiras. Aqui, um fim e um novo começo. Um brinde.  

Simone de Paula – 30/12/2016



quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Quem sabe?

Que culpa tinha ela?
Poderiam pensar

De não ver a si mesma?
A realidade?

Não vamos falar em culpa, mas jornada.

Maria Laura

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Os cacos colados

Ela sempre acreditou no amor. Pensava que todos tinham a capacidade de amar. Vislumbrava encontrar aquele que seria seu par. Viveu muitas histórias. Nunca desistiu. 
O primeiro amor foi juvenil, terno, um sopro de esperança no coração. Na impossibilidade de se mesclarem, de desenvolver com ele a tal esperança que ela tinha descoberto, se afastou . De longe o olhava e fez um belo mosaico num porta-joias de madeira. Na época não tinha joias para aquela caixinha, mas a manteve no criado-mudo por um tempo, como lembrança daquele sentimento bom. Uma amiga de escola comentou que queria um baú para esconder seus pertences mais íntimos e a caixinha era perfeita para isso. Sem hesitar, ela presenteou a amiga. Notou na alegria daquela menina-moça a certeza de que tinha feito a coisa certa.
Tranquila, desavisada, conheceu o que ela realmente chamou de primeiro amor. Não veio como o anterior, pelo contrário. Um susto, uma recusa, um sentimento insuportável de ser posse de alguém que nem sabe que possui. Como alguém pode sentir vergonha em amar? Ela pôde. Mesmo diante de tudo isso, sentiu a satisfação de ser enfeitiçada. Mas aquele amor foi tão arrebatador que ela decidiu não largá-lo para o resto da vida. Ela acreditou nisso. Tola, romântica, jovem demais. O tempo passou, a distância chegou e ela sofria quieta, trançando os longos cabelos lisos e tricotando um cachecol para o próximo inverno. Fez frio e ela protegeu seu pescoço e sua cabeça para se manter aquecida. Seu coração estava sempre quente, pulsante, porque mesmo triste, ele batia. 
Uma nova primavera, um novo amor, mais tranquilo, vindo com a amizade própria dos momentos utópicos e heroicos que todos vivemos aos 20 anos. Ela tinha o mundo para conhecer e ele era uma fatia desse mundo. O romantismo deu lugar ao idealismo. A troca de ideias trouxe para ela a noção do que importava naquele outro, em um homem. Ele complementaria a intensidade do anterior? Um trouxe o fogo o outro veio com o ar. Ela respirava, suspirava, sufocava, ficava sem ar. Os destinos que tinham se cruzado se desenlaçaram e ela mergulhou no cinema, na colagem de imagens emolduradas nas capas de caderno, embaladas pela musica que permitia sofrer e chorar e rir e dançar. Era uma época tão agigantada de mundo que as possibilidades se multiplicaram e ela sentiu a beleza da juventude em seu corpo, sua pele, seus olhos e ouvidos, sua boca e mãos, como se nada pudesse abalar aquele sem fim de pulsante exuberância. 
E então, o giro parou. A vida ficou em suspensão. Ela se aquietou. As tardes passavam e ela produzia alguns bordados para preencher o tempo que parecia vazio. As linhas coloridas no tecido branco, preso ao bastião antigo, permitiam criar cenas e cenários diversos. O mundo das imagens era interpretado através daquelas  formas.  Ela projetava o futuro sem saber que o fazia. Montou um príncipe, uma lagoa, um sapo, um cavalo branco, uma fada, uma floresta, uma choupana e pássaros, muitos; e árvores, diversas. E sol, e lua, e planetas, e estrelas. E o céu, e a terra, e o mar, e o oriente, e o ocidente. O tempo passou, longo, seguro, ilustrado. A vida era um vai e vem, subidas e descidas, um balanço no parque e ela relembrava da alegria e da tristeza da infância. Como diz a sábia anciã: "a infância é o melhor e o pior momento de nossas vidas."  
Numa subida vertiginosa, ela se viu surpreendida pela eletricidade inimaginada. Entre risos e liberdade, as amarras se soltaram e o brilho intenso dos olhos retornaram . Não tinha futuro, só presente. E foi um belo presente . E dele vieram outros. Era como um natal feliz em que Papai Noel atende todos os desejos sem que o presenteado saiba que tenha desejado. Nos momentos solitários, seus desenhos agora seguiam com linhas e cores em folhas firmes de papel branco. Eram interpretados, entendidos, analisados. O campo mítico e místico enriqueciam seu mundo imaginativo e as palavras também entravam em cena, completavam seu universo decorativo. Mas todo esse presépio bem montado foi estilhaçado num trajeto entre mundos. Ela parecia carregar tudo bem estruturado naquela imagem bem planejada. Mas sempre tem aquele que vem e bagunça o castelo de cartas. O lobo mau derrubou as casas dos porquinhos e riu satisfeito do feito. Era hora de pegar os cacos e colar, montar de novo, como uma brincadeira de lego, tentando novas formas com os antigos elementos. Mas como é difícil não ver as rachaduras, os veios, as cicatrizes, agora que elas existem? De longe nem notamos muito, mas de perto, reconhecemos quem esteve ali e o que fez, e o oco e o vazio, que mostrou dela. Ela não podia e nem queria mais negar isso e seguiu. Colou menos, quebrou tudo que percebia estar firme há muito tempo, rígido, sem vida. Funcionou. Agora sim, novas formas possíveis , de um jeito mais verdadeiro e menos romântico., e mesmo assim, muito apaixonado. Ela ainda não sabia o que faria para restaurar a forma do seu coração, mas tinha entendido o propósito feminino do amor e de amar. Artesãs, restauradoras do coração. E, ela teve certeza, mesmo quebrando em mil pedacinhos, que valia a pena continuar colando, tecendo, traçando, pintando, bordando, envernizando, cerzindo aquele órgão vital, que tanto preenche isso que chama, que inflama, que espera, na mulher. 


Simone de Paula - 22/12/2016




Inspirado em Ana Figueiredo e Lêda Guimarães, que por meios distintos reafirmam o amor e o feminino.  Servem de musas, me.lembram de mim. 

quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Bela

Havia um rei, três filhas.
a mais linda, Psiquê.

Não casava, a menina.
A beleza tão grande gerava suspeita.
Coisa assim é possível?

Só em uma deusa caberia essa imagem.
Seria ela divina?

Os homens enfileiravam-se, era venerada, confundida.
Ofereciam-lhe flores, frutos, preciosidades.

O que não sabiam: era humana e só.



Maria Laura, São Paulo chove.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Se você encontrar isso, leia!

'Espero que alguém leia isso....

'os dias estão mais sombrios, as pessoas mais fechadas, se olhando com desconfiança.... suspeitam uns dos outros e eu não estou fora disso, também me fecho e olho com dúvida sobre o que pode vir de lá.... são todos próximos, mas não posso confiar em ninguém.'

'amanheceu chovendo... a noite foi barulhenta, estrondos, gritos, muita aflição... eu tentei dormir, mas os sobressaltos foram inevitáveis diante dos acontecimentos da rua... não sei como passarei este dia, mas não resta nada a não ser passar...'

'a noite parece calma, durante o dia trabalhei muito, a vida continua, o trabalho continua, a aparente normalidade faz a gente acreditar que hoje pode ser o último dia desse estado de medo e assombro... o inverno parece mais distante, raios de sol de primavera já mudam o clima... será que meu corpo cansado me faz acreditar que a paz existe? o sono veio, meus olhos querem fechar, espero apenas uma boa noite.'

'hoje nos reunimos para fazer orações e contar histórias para as crianças... cada vez é mais importante que elas carreguem aquilo que não poderemos sustentar por muito mais tempo... cada dia pode ser o último e o que morre conosco, acaba para sempre....será que algum bebê conhecerá seu pai? lembrei do meu pai, se foi há alguns meses e ainda não voltou.. será que volta? não tenho esperanças, nesse estado, nenhum de nós tem esperanças, nem fé, nem amor, só história, é só isso que ainda temos.'

'acordei com muita gritaria hoje e não soube dizer se era sonho ou realidade... pulei da cama e olhei pela casa, através das janelas, mas na rua tudo parecia calmo.. era muito cedo, o dia anunciava sua chegada, mas não daria para dizer que cara teria, se teríamos sol quente ou muita chuva, tudo podia acontecer.... pensei em voltar para a cama, mas meus pés não saiam do lugar e meus olhos miravam insistentes para o horizonte... tentei chamar alguém, acordar alguém, parecia que eu tinha me tornado pedra e aquela aflição foi tão grande que desmaiei... notei que tinha sido um sonho, e eu chorei por alguns minutos na cama, com a certeza que essa era a minha real situação: implorando por um destino, mas sem meios de sair daqui, de me mover.'

'os dias têm sido mais calmos, as noites menos barulhentas, mas a impressão de paz carrega consigo a suspeita de um ataque mais duro, mais feroz... não temos notícias, nem dos nossos, nem do que realmente acontece... saber é sempre melhor do que ficar na indefinição, alguém me diga, por favor,'

'a verdade chegou, fomos invadidos, tomados, nosso futuro agora está nas mãos de inimigos... eu estou nas mãos de inimigos, que me olham com ódio sem nem saber quem eu sou... o tempo se foi, não há mais o que dizer... será que esse é o fim?'

'hoje eu sei, deixarei minha casa, minha vida, minhas lembranças e seguirei com eles, não sei para onde, mas seguirei, não tenho escolha, apenas devo obedecer... se viverei ou morrerei, também não sei, mas devo seguir... o sonho se cumpriu, um horizonte sem ninguém e minha alma petrificada evitando desabar em choro e dor...'

... a você que encontrar isso, repasse adiante e faça vivas as minhas palavras'

Simone de Paula - 16/12/2016



Inspirado na aula sobre mortes coletivas, de 14/12/2016, de Ana Figueiredo, do curso Vislumbres e Miradas da Morte.




quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Ela dorme

dormir, negar, não ver
exige tempo
e coragem

algo em nós sabe que Psiquê quer despertar
a outra parte entende que antes da hora
o mamão será tomate, como canta Gil

fique, se precisar 
e me chame depois

estarei com a escuta atenta
e com sede.


Maria Laura

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Um abismo, uma vertigem



Ainda hoje você me provoca esse desarranjo, esse desconcerto. Já faz muito tempo e eu não paro de te querer. E quero, quero, mas finjo que quero te perder. Eu não me entrego com medo que você me largue. Você está sempre um passo antes do lugar exato de me resgatar. Eu digo não, eu blefo. Dependo tanto quanto um olhar precisa do mundo. 

Simone de Paula – 29/09/2016


imagem em CenaPop - Vírgula - Uol



Inspirado na frase “Cada pessoa é um abismo. Dá vertigem olhar dentro delas.” – Sigmund Freud

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Psiquê

Ela dormia, dormia.
Ia ser difícil despertar, mal sabia.
O cupido se aproximava, enviado pela própria mãe, Afrodite.

O embate cochilava tranquilo.
A roda está pronta para girar.


Acorde amor.

Maria Laura

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

A doce dor da diferença

A percepção da diferença sempre veio com muita dor. Era doído, uma verdadeira mágoa a constatação de ser diferente. Quando pequena, a cor pálida contrastava com a morenice da minha irmã. Acho que foi a primeira diferença vivenciada, mas depois percebemos que a cor da pele era a menor das nossas diferenças. Depois me ouvi falando diferente na escola. Alfabetizada em Salvador, me mudei para uma cidade no interior do Paraná, escutei minha narrativa e logo percebi que meu sotaque era diferente. Talvez, na época não tinha repertório para marcar a posição, mas o fato é que falava diferente e com certeza sentia diferente tambêm. De lá pra cá, a diferença passou a ser minha companheira. Passei os anos da faculdade me sentindo muito diferente da maioria. Não foram "os melhores anos da minha vida", como dizem, mas sim, as maiores angústias que senti. A angústia me engoliu e mais uma vez a diferença machucava. Percorro hoje as inúmeras escolhas que fiz e percebo que sim, a dor da diferença sempre esteve comigo, era a dor de não ser igual a minha família, de não pensar da mesma forma e nem escolher o mesmo roteiro. De não ser igual às minhas amigas, de gostar dos livros que não estavam na lista dos mais vendidos, de me relacionar com a minha angústia mergulhando intensamente e muitas vezes escutando ou só sentindo como incomodava os que estavam em volta. Hoje, acredito que ainda incomodo quando digo que não quero ter filhos, quando tenho uma relação pautada em outros desejos e vivo sabendo que a vida não dá garantias. Que ser feliz não cabe em nenhum roteiro pré fabricado. A maturidade e a independência trouxeram uma nova forma de viver a diferença, hoje mais alegre e mais íntegra. Atualmente a diferença não machuca muito, ela vem quase como um deboche diante daqueles que não entenderam nada do meu percurso. Ela sempre me lembra o quanto é necessário conquistar a autonomia para ser quem se é. E só posso agradecer quem no caminho respeitou minha diferença, pegou na minha mão e hoje percebe que foi na doce diferença que me constitui.
         Carla - 06/12/2016

sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

A gente quebra a cara para parar de lascar os dentes

Adélia se considerava uma pessoa de bom gosto. A rotina incluía um dia de shopping por semana. Não eram compras de abastecimento doméstico, mas eram artigos de decoração ou reposição, seja para a casa, para o filho, ou para ela. Não percebia, mas se deixava em terceiro lugar. Pragmática, avaliava bem tudo que precisava para planejar as compras e ter mais eficiência, e voltar para casa com o melhor que podia. Isso geralmente dava certo, mas quando ela colocava no espaço prévio o item adquirido, não podia deixar de notar o brilho que faltou, que nunca teve, mas que foi almejado quando desejou aquilo que foi buscar. Ela não sabia muito bem o que podia ser aquele brilho, mas sabia que existia, porque o incluía nos pensamentos e planejamentos.
Uma das melhores amigas, Catarina, fez aniversário e lhe pediu dicas para a comemoração. Ela ajudou, estava animada para o evento. Chegou lá muito desarmada, sabia tudo que iria acontecer, os convidados, as comidas, até as músicas que o marido de Catarina tinha escolhido. Mas a vida nem sempre funciona como o plano, nem humano, nem divino, e um antigo amigo de Catarina, com quem ela tinha estudado, resolveu aparecer de surpresa. Eles tinham muito contato no passado, eram vizinhos. Recentemente tinham se reconectado pelas redes sociais. Catarina nem tinha comentado sobre isso com Adélia e ela nem esperava aquele homem maduro, barba cerrada, porte médio e semblante de macho bem domado, sem nenhum sinal de perigo aparente. Como manda a educação, foi apresentado para todos e não fez nenhuma menção especial a ninguém. Se entrosou com o marido de Catarina e a noite passou suave, exceto para o peito e a cabeça de Adélia, que disfarçava um estado insistente de atenção que ela não sabia direito de onde vinha. Sem dúvida Ernani a surpreendeu, não apenas porque era um homem que lhe chamou atenção, mas também porque não era esperado. Pois é, Adélia invertia as ordens, mudava as coisas de foco, o importante vinha depois, o mais óbvio também, ela usava a lógica de pensar primeiro o que numa realidade mais coerente, deveria ser pensado depois. Mas seu fluxo de pensamento seguia a bagunça das suas emoções e lhe dava o maior trabalho para controlá-los e realinhá-los. No final da festa ficaram os convidados mais próximos e Ernani veio comversar um pouco mais com as mulheres. Ele era um professor universitário um pouco frustrado com a carreira acadêmica. Sem muito jeito com o corpo, sem muita ousadia de afirmar o que pensa sem citações ou receios de ser questionado pelos pares, falava de coisas interessantes, mas ficava no terreno seguro das produções culturais. Adélia seria incapaz de perceber essa condição insegura de Ernani, afinal, ela mergulhava na eloquência dele e nos comentários bastante inteligentes sobre os assuntos comuns que estavam em pauta. Lembrem-se, a lógica dela deixava o óbvio para depois. Ela sabia que ele a encantava pelo saber, mas a atraia com algo a mais, que ela ainda não seria capaz de definir. Ernani a convidou para irem ao teatro na próxima semana e ela aceitou. Mas, no dia do encontro Ernani não entrou em contato e a frustrou. Ela ficou um tanto decepcionada, roeu as unhas, coisa que não fazia ha anos, comeu aquela barra de chocolate do filho, inteira, sofreu um pouco, era merecido naquele momento e voltou a dormir rangendo o maxilar. Acordou com uma leve dor de cabeça e pensou que estava se importando demais com um desdonhecido. Mas Ernani ligou durante o dia se desculpando, dizendo dos impedimentos dele. Ela aceitou as desculpas e marcaram novo encontro, que de fato aconteceu apenas depois de três ou quatros furos que ele deu com ela. O programa foi bom, um tanto menos encantador do que o esperado, mas as altas expectativas bem frustradas anteriormente, já não cabiam mais. Ela imaginou que estivessem num namoro, mas isso só aconteceu uns seis meses depois. Ela, com a cabeça muito organizadora, entendeu que ele era lento, inseguro em relação ao amor, precisava ir com calma e ela aceitou. Com o passar do tempo ela notava a constante opressão branda que vinha dele e apesar disso ela ainda sentia falta dele. Estava levemente apaixonada, mas também estava presa. E ainda não entendia em quê. O tempo passou, ela frustrada e apaixonada, ele presente e ineficiente. Ela tinha escolhido um item fora do padrào geral das suas escolhas. Será que tinha mesmo escolhido? Ela sabia que sim, mas ainda não identificava o que e por que. Um dia, estavam conversando sobre amigos, a vida de um e de outro e Ernani teve um acesso de ciúmes. Ela estranhou, mas ele ficou realmente furioso. Explicações, desculpas incabidas, mas utilizadas como forma de abrandar os ânimos, e ela ficou surpresa. Mais uma vez, sem saber de onde tinha saído aquele Ernani. Depois dessa cena, ela ficou mais ligada, mais atada, se colocando na mira dele. O ciúme foi aumentando e ela foi se prendendo e se privando. Ele brigava mais por coisas menores, do ciúme de outros homens ou amigas, passou para o ciúme do filho. Depois, passou para o ciume da casa e das compras. Chegou no limite, ciúme dos pensamentos, queria satisfação sobre o que ela estava pensando o tempo todo. O ranger de dentes dela aumentou, as dores de cabeça também, a ansiedade ficou permanente e uma leve taquicardia a acompanhava pelo dia, e aumentava nas noites em que se encontrariam. Ele disse que talvez o casamento fosse a melhor saída para ele se acalmar, pois vivia com medo de perdê-la. Ela ficava entre o gozo de ser tão necessária para alguém e o desespero de ser presa de um maníaco. Não via como deixá-lo, nem porque queria manter a delícia de pertencer e nem como se livrar do tirano. Era uma situação estanque por qualquer ângulo que ela olhasse. Foram seguindo com a ideia de casamento, pensando quando, como, onde. Numa noite quente de verão, depois de algumas cervejas, fizeram a lista de convidados e diante do nome de Orlando, marido de Catarina, Ernani teve o maior acesso de raiva até então já visto por ela. Ele empurrou móveis, gritou, segurou no seu braço, apertou seu queixo e mostrou tanta agressividade que ela não sabia se seria espancada ou ele acalmaria. Era um vulcão em erupção. Ela olhou nos olhos dele e viu a fúria que explodia incessantemente. O medo gelou seu corpo, ativou suas pernas e ela correu, fugiu, mas foi justamente o que fez a fera se mover mais forte dentro dele, que a agarrou e a esmurrou. Jogou-a ao chão, a chutou, cupiu em cima dela e saiu. Caída, doída, sofeu por uma hora sem se mexer, sem nem pensar, tudo parou. Quando voltou a respirar, sentir o corpo, o gosto de sangue na boca, a dor no quadril e nas pernas, lembrou de Catarina, de Orlando, do filho, da casa, da vida. Levantou do chão, pegou a bolsa e foi para a delegacia. Denunciou Ernani, passou todos os dados que tinha dele, voltou pra casa. O medo não estava mais com ela, num estranho sentimento de ter acontecido o pior, maior do que o imaginado. Naquela noite, passada em claro, ela lembrou um detalhe bem pequenininho que nunca  tinha sido bem percebido por ela, aquele olhar de fúria que ela viu em Ernani naquele dia era o mesmo do dia em que o conheceu. Da primeira vez era uma espécie de brilho, atraente e enigmático. Mas dessa vez, ele se revelou claro, sem mistérios, o ódio. Ela entendeu que de alguma forma buscava um além, um a mais, o ódio do incontrolável do mundo. A vida não seria a mesma. Sua percepção das coisas também não. Notou que começou a pensar em ordem diferente. Parecia que se colocava em primeiro lugar, o que ela queria antes, mas ainda carregava a memória das dores no corpo daquela surra recebida. As marcas roxas sumiram, mas a sensação da dor e da saliva gelada do cuspe em sua cara, isso ela jamais seria capaz de apagar. 

Simone de Paula - 02/12/2016



quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Começou

Apuleio.

Era o ano de 125 quando veio ao mundo.

Foi em uma colônia romana, na Itália, era bem nascido, bem criado, viajou, estudou ritos, mitos, cultos, foi professor, escritor, viveu em Cartago, Atenas, África.

Diz-se que através da magia conquistou sua mulher, uma viúva rica e triste, Emília.

Sua grande obra: “O Asno de Ouro”.
Aí dentro mora uma história de amor: “Eros e Psiquê”.

A mais bonita que já vi.
O único romance da antiguidade que chegou para gente completo. Lindo.

Vou te contar.


Maria Laura, São Paulo.