sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Herança de família

João Roberto assumiu a fazenda de carneiros do pai logo cedo. A morte repentina do velho não deu tempo pra ele pensar em nada, só tocar aquela situação. Formou família ali mesmo. Em vinte anos ele nunca tinha pensado que um dia isso iria mudar, que ele teria que repartir aquelas terras.
Sentado na varanda, na antiga cadeira de balanço do pai, pensava, matutava com a carta recém lida, apertada na palma da mão. A ira era vista nos olhos dele e o silêncio confirmava a contrariedade. Não sentia injustiça, porque o ódio era maior. A sobrinha Camila tinha contratado um advogado para resolver a partilha que não tinha acontecido com a morte do avô.
A irmã Ester foi ainda moça estudar na cidade. Se casou com Edney, um bancário que tinha pretensões altas de carreira. Mas isso não aconteceu. Tiveram uma única filha que foi criada como princesa. E agora, a princesa voltava para reivindicar seu reino.
Ele resolveu ignorar a carta, a situação e deixar isso pra lá. Trabalhava sem se importar com a data da assinatura que se aproximava. 
O inverno chegou mais frio do que no ano anterior. João Roberto voltava da cavalgada matinal para conferir as cercas e os bichos, quando notou que um carro estranho estava estacionado na frente da casa. Respirou fundo, bufou, praguejou, entrou pronto para a batalha. Olhou a sobrinha, uma moça com um olhar tão desafiador quanto o dele. Ao lado, o advogado engravatado segurava a pasta de documentos. 
- Oi tio. 
Ele era do mato, bravo como os carneiros que vivem se engalfinhando quando não tem lobo por perto. Não respondeu. Foi pra cozinha e pediu um café. Voltou e olhou para o advogado. O cumprimentou e pegou os papéis. 
Ali estavam plantas da fazenda, cálculos de metragem, muita documentação, certidões de nascimento e óbito, todos os papeis que poderia alguém ter na vida e na morte. 
João olhava aquilo e lembrava do pai. João já nasceu na fazenda. Do avô passou para o pai passou para ele. Quem é essa menina agora? E ele nem morreu. E ele nem tem filho. Ele não sabia o que o pai faria nessa situação, que nem deveria acontecer.
O advogado explicava como seria a divisão, que deveriam colocar uma cerca, um limite, porque Camila iria assumir a parte dela. Queria plantar, usar a terra para a agricultura.
João levantou e saiu. Fátima, sua esposa, olhou para os estranhos e sorriu, ofereceu mais um café e disse que ele ia voltar logo. Era o jeito dele.
A cabeça dele estava a mil. Agricultura? Ela estava louca. Não sabia da terra, não sabia de nada. Ali era lugar de criação, de bicho. Ela ia destruir as terras dele. Ele devia ter insistido mais em ter um filho. Achou que poderia viver para sempre, era isso.
Tomou a decisão mais impensada da vida. Voltou para a sala, olhou para todos e anunciou.
- doutor, eu assino essa papelada, mas aqui não fico mais. Prepare a doação da minha parte para essa menina. Se ela quer mudar o rumo das coisas, que cuide de tudo. Se vai destruir o patrimônio, que faça longe das minhas vistas.
- Fátima, estamos de mudança. Você sempre quis morar na cidade que sua irmã mora, cidade grande, é pra lá que vamos.
Aparentemente a única que não teve surpresa com a decisão foi Fátima, que sabia que assim era o marido.
Três meses se passaram, João Roberto e Fátima foram para a cidade grande e Camila mudou para a fazenda. Mas antes ela tinha chamado arquiteto, mudado alguns cômodos da casa e toda a decoração. A mudança também aconteceria nas terras, na produção daquela fazenda. Contratou um agrônomo que fez uma bela investigação sobre o solo. Camila detestava o fedor dos animais e foi vendendo tudo. Mas ela não era uma desavisada ali, sabia o que queria, sabia fazer aquele negócio bem, afinal, era neta e bisneta de fazendeiros e ainda tinha estudado muito pra isso.
Camila foi investindo mais e mais naquela terra. Negociando cada vez melhor com os compradores, produzindo cada vez mais alimentos. Ela já ocupava aquele solo há mais de dez anos. 
Num final de ano os pais vieram passar uns dias com ela. Ester encantada com tudo aquilo nem sabia o que falar. Edney só pensava em explicar para a filha sobre taxas de juros bancários, como se ela não tivesse enriquecido muito naquele período. Mas Camila parecia se sentir em débito, queria ir além na vida, casar, ter filhos, encher a fazenda, mas não sabia como fazer, ainda não se sentia dona absoluta, mesmo com a doação recebida. Parecia que o tio tinha deixado um fantasma ali para ser lembrado. Ela resolveu convidá-los para o natal. Ligou para Fátima e combinaram tudo. Desde que Camila tinha conhecido a tia, tinham estabelecido uma boa amizade. Ela sabia que o tio era difícil e que se sentia usurpado. Mas isso poderia mudar um dia.
Fátima convenceu João Roberto, afinal, em mais de 30 anos de casamento, ela sabia como lidar com ele. Chegaram na fazenda e ela notou que ele olhava, mas não queria ver. Foram recebidos por Camila, bem na varanda que conservava a antiga cadeira de balanço do avô, mesmo com todo embelezamento feito. Ela também tinha pedido para deixarem selado o cavalo do tio, que estava velho, mas ainda era muito bem cuidado. João sorriu ao ver o animal. Montou e saiu pela fazenda livre, solto. 
Ele passou horas cavalgando, olhando tudo, conversando com os empregados, percebendo que a sobrinha tinha mudado tudo, mas não era uma boba, era da estirpe dele, era da terra. Voltou, olhou pra ela e deu um abraço forte, um sorriso franco e respirou tranquilo. As terras da família ainda ficariam por muito tempo ali, passadas de geração em geração. 

Simone de Paula - 25/11/2016


Conto inspirado nos arquétipos Áries e Touro.



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