quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Obediência

Durante os primeiros trinta anos de vida tinha decidido não obedecer. Rebelde, transgressora, questionadora, todas essas qualidades que indicam a essência da desobediência. Mas o tempo passou, a paciência esgotou e a vontade de brigar diminuiu. Quanto mais se sabia livre, menos precisava desobedecer. A lógica parece inversa, e é. Mas Maria Emília finalmente ficava liberta da necessidade de colocar no mundo os opositores.
A situação chegava a ser engraçada, pois mandavam ela sentar, e ela sentava. Levantar, e ela levantava. Deitar, e ela deitava. Era assim, fazia sem questionar, sabendo que estava dizendo sim para a palavra do outro.  Certo dia, comentou com o marido que estava com dor no ombro. Ele sugeriu que ela levantasse e girasse bem rápido os braços. Ela fez. Ele gostou da brincadeira, pois ainda a achava desobediente. Num tom de comando, ia dizendo que perna ficava na frente, qual braço ficaria atrás e como deveria girá-lo. Ele ria, ela obedecia, seriamente.
Como a dor não cessou, ela procurou um médico, que inesperadamente resolveu examiná-la, antes mesmo de pedir uma ressonância, prática comum com médicos de convênio. Ela deitou na maca, e ele voltou para a sua mesa, pedindo para ela descrever a dor. Estranho tudo aquilo, ainda mais porque ela esperava o exame. Antes mesmo de voltar a levantar do seu 'trono', ele anuncia o exame de ressonância que ela deveria fazer e que a consulta estava encerrada.
Ela se sentiu altamente ofendida, não por ter obedecido, mas por ter percebido que ela obedecera e ele não cumpriu a parte dele. Deitar na maca numa consulta significa ser examinada,especialmente por ter sido o comando dele através de sua palavra, porque para responder as questões, ela nem precisaria sair da cadeira em frente a ele. Sim, foi frustrante. Mas uma frase se repetia em sua mente: ‘esse é o lugar da melancolia.’ Ela não sabia de onde vinha essa afirmação, só sabia que era tão insistente que não conseguia parar de pensar. Junto com a palavra melancolia, as lágrimas anunciavam um choro silencioso, fundo e doído. O que era aquilo tudo. Os ombros doendo cada vez mais, a postura mais encolhida, as lágrimas permanentemente umedecendo os olhos.
Maria Emília fez a ressonância, obedientemente. Quando voltou com o resultado do exame, ele indicou um antiinflamatório e fisioterapia, coisa tão padronizada que ela nem precisaria de médico, nem exame e muito menos ter o intervalo entre consulta e retorno, pois é atitude padrão de ortopedistas. Saiu de lá e jogou a receita fora. Obediente sim, frustrada e sem resposta, isso não é aceitável, ultrapassa qualquer nível de relação, pois rompe a relação.

Simone de Paula – 05/10/2016

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