sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Entalada


Houve um tempo em que eu engoli, engoli muito. A oferta vinha de fora e eu botava pra dentro. Nem sempre eu queria e nem sabia o que fazer com aquilo. Mesmo na ânsia, na precipitação do vômito, me segurava e mantinha lá, engolido. Se estava na borda da garganta, na boca do estômago ou no meio do intestino, não importava, só sei que estava dentro. Eu sorria, com os lábios bem apertados, para não correr o risco de despejar o que deveria permanecer engolido.
Entalada, sem meios de expelir o que já tinha saturado, uma revolta interna fez supurar aquela merda toda e numa tosse incontrolável vomitei, vomitei muito, incessantemente. Os jatos jorravam, se lançavam como foguetes buscando o céu. Me senti vazia, culpada, envergonhada. Meu entorno mostrava eras de entorpecimento. Eu não me reconhecia na vomitona e nem sabia como recuperar a engolidora. Respirei, olhei, recuei. Comi tudo de novo, aquele vômito nojento, disforme, como um animal que se alimenta dos seus próprios excrementos. Escondi tudo de novo, não de mim, do mundo.
Se antes o que foi pra dentro já não era agradável, longe disso, agora era impossível permitir que avançasse demais corpo adentro. A garganta permanentemente irritada, sufocada, atulhada daquele gosto acre e repugnante. Mas eu não podia, voluntariamente, vomitar novamente. Segurava, firme, silenciando as palavras para não correr o risco de regurgitar tudo de novo.
Tento esconder de mim a cena da erupção vinda das minhas entranhas. Cubro os olhos, mesmo num entorno aparentemente imaculado. Aquilo que nem está mais ali, visível, é a marca catártica outrora reconhecida. Imaginava fora o que via dentro. Aquilo era meu? Sim, era meu. Mas como tinha ido parar ali. Bem, vindo de lá, de lá de fora. Como mandar embora? Eu não aceitava o fato que saísse assim, cru, disforme, horrendo, visceral, grotesco. Queria que viesse ao mundo educado, aceitável, encantador. Não era assim, não tinha entrado assim, tinha sido forçado. Foi obrigatório. Não havia dentro de mim o que pudesse processar aquilo, não tinha outra via para sair.
Parei, parei tudo. Se me movo, sejam pernas, braços, boca ou olhos, corro o risco de botar tudo de novo pra fora e culpada, recolher, como um animal. Parei, não sei.  

Simone de Paula - 20/10/2016

 The scape of the artist - Jan Fabre

Sugestão de música para ouvir lendo o conto: Queens of the stone age - 'no one knows'
https://www.youtube.com/watch?v=K9WOBsPVjFE 
letra e tradução aqui:
https://www.letras.mus.br/queens-of-the-stone-age/64333/traducao.html

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