quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Na calada da noite



Lígia olhava para as mãos e via um tremor ininterrupto. Respirar fundo não adiantava, não acalmava. Esse estado alterado já durava três meses e ainda nem pista de voltar ao normal. Ela fechava os olhos e se via parada na rua, olhando fixamente para a arma na mão do desconhecido. Chamava de ‘ele’, porque sabia que era um homem, mas não tinha visto nem rosto nem nada, só a arma. O assalto durou pouco mais de um minuto, mas na dimensão do tempo do medo, tinha sido uma eternidade. A morte, ela estava ali, espreitando, rondando. Levar um tiro na cara, era isso que ela imaginou. Não, não aconteceu. Agora, sentada no sofá da sala de estar, treme e lembra, suspira e fecha os olhos. Quer sair da prisão em que se fechou, afinal, era uma condenada que não tinha cometido o crime.
Todo esse drama não fazia parte da personalidade oficial de Ligia. Era uma mulher solteira, que morava há cerca de cinco anos na casa que tinha sido de uma tia. Depois de pequenas reformas, a assumiu como o seu lar. Agora, mais do que o lar, era a cela em que ela tinha se enclausurado. Criou um mecanismo para que tudo chegasse até ela. As compras eram feitas pela internet, as contas vinham pelo correio, e as visitas eventuais avisavam antes de ir, mas iam. Na verdade, ninguém precisa sair de casa hoje em dia. Ela não conseguia sair, mas sabia que precisaria encarar a rua um dia ou outro.
Interrompeu o olhar perdido no tremor das mãos ao ouvir o toque do telefone. Assustada, menos pelo som e mais pelo retorno do devaneio. Era Lucas, seu irmão mais moço. Ele queria saber como ela estava. Com uma voz fria e paternal, Lucas tentou motivá-la a sair daquela situação.
- Ligia, você já procurou um psiquiatra? Acho que é o caso.
- Não, Lucas, não procurei, não consigo sair de casa sozinha.
- Eu iria com você, mas estou no trabalho o dia todo. Veja se alguém atende aos sábados. O dia da assinatura está chegando e você precisa ir até o cartório.
Quando desligou sentiu um certo alívio depois de ouvir a voz do irmão. Deitou no sofá e teve um sono tranquilo, coisa que não acontecia todas as noites. Acordou com um grito estridente e pulou com o coração na boca. Estava sonhando com uma situação estranha, sinistra. O irmão Lucas, estava sentado em cima de um muro, como uma gárgula, olhando fixamente para ela que tentava se soltar de um xale bordô que a sufocava.
O que significaria aquele sonho? Ela não sabia, mas aquele olhar de Lucas despertou nela um sentimento vingativo. Ela começou a relembrar do breve telefonema e notou traços de descaso na voz dele. Ele dizendo que trabalhava o dia todo, diretamente para ela, que estava de licença pelo estado de pânico em que se encontrava. Ele achava aquilo tudo uma banalidade. E ela era uma fraca. Ele insistia no assunto porque ainda tinham pendências da escritura para resolver, na certa queria dividir a casa da tia com ela. Tomada de orgulho resolveu provar que ela não precisaria dele para sair dessa situação.
Ouviu de novo o grito, agora tinha certeza que vinha da rua que ficava nos fundos da casa. Era um grito estridente e o coração novamente voltou a palpitar freneticamente. A reação de Ligia foi imediata, apagou as luzes e foi andando sorrateira até cozinha. Olhou pela janela e não viu ninguém, mas ouviu novamente o grito, que vinha do lado esquerdo da rua, o mesmo em que ela tinha sido assaltada. Ela colocou o sapato e correu para a porta. Por alguns segundos esqueceu o medo. Mas quanto colocou a mão na maçaneta, lembrou novamente de tudo, não conseguiu, nem abrir a porta e muito menos sair para ajudar aquela que gritava.
Para justificar a covardia pensou que talvez tivesse alucinado o grito. Ela era mesmo caso de psiquiatra, estava delirando. Será mesmo que ela tinha ouvido o grito mais duas vezes ou eram reflexo do sonho? Sua cabeça não parava.
Pensou em ir para a cama, mas dormir seria impossível nesse estado. Ligou a TV para ver um filme. Procurou entre os canais e deixou num programa sobre troca de famílias. Era tudo tão falso que ela foi ficando descontraída e até riu nos momentos mais bobos. O episódio terminou e o sono não estava nem perto de chegar. Ficou ali para ver o próximo programa. Era um sobre caçadores de espíritos. Ela não poderia acreditar numa oportunidade melhor para soltar o clima de tensão, pois não tinha medo de mortos, nem assombrações, o medo era dos vivos, com armas, ameaçadores da vida real.
Mal sabia Ligia que o programa era tão bem feito. Percebia nitidamente que os participantes estavam em estado de choque, ela mesma foi sentindo uma angústia e parecia estar sendo observada dentro da própria casa. Será que o ladrão estava do lado de fora da porta da cozinha? Ela só pensava que morar sozinha numa casa na cidade era uma burrice. Foi ficando cada vez mais afetada, desligou a tv e correu pro quarto. Ali tudo parecia vivo, olhando para ela. Não adiantava acender a luz, pois a solidão era tamanha e o medo deformava tudo. Passou a noite entre chás de camomila e idas ao banheiro. Aproveitou os insones das redes sociais para bater papo furado e passar aquela longa madrugada ‘acompanhada’.
O dia amanheceu e ela adormeceu. Por volta do meio dia, acordou e se sentia pesada, exausta, precisava fazer algo. O sofrimento e o medo cansam demais a alma e chega uma hora que não dá nem mais para sentir aquilo. Ligou para a Soninha, amiga que curtia terapias alternativas para pedir uma ajuda. Descobriu Hera, uma acupunturista das boas. Como ela chegaria lá? Táxi era uma saída. Ligou para Hera e marcou para o comecinho da noite, era o único horário. Ligou para a central de táxi, que demorou muito para atender. Claro, quem liga para central de táxi hoje? Se viu completamente fora do tempo, tinha ficado velha. Mas o táxi chegou na hora marcada.  Ela tinha se preparado para o que pudesse acontecer. Tomado água com açúcar, maracujina e ainda rezado todas as orações que a tia tinha ensinado na infância. Dessa vez ela iria enfrentar a saída de casa.
Saiu pela porta da frente. Olhou o carro, que era bem velho. Pensou que deveria ter chamado um Uber, mas a burrice do medo nem deixava mais ela pensar. Não poderia recuar, seguiu firme, com o foco apenas na porta traseira e entrou. O motorista olhou com descaso e deu um ‘boa noite’ bem desanimado. Ela ficou sentada de forma bem ereta no canto do banco perto da porta. Passou o endereço e seguiram. Ela olhava aquele carro, notava uns detalhes estranhos. Ele parecia umbandista. Ela olhou no pescoço dele e viu a guia de contas coloridas. Não saberia dizer o que significava. Nem o sinal da cruz ela poderia fazer, porque ele poderia achar que ela estava desconfiada. Pensou que não deveria ter visto o programa das assombrações, porque agora, até de espírito ela estava com medo. Na verdade ela queria passar invisível, até para o motorista do táxi, até mesmo para os espíritos. Olhava aquelas contas coloridas naquele pescoço peludo, sentia um incômodo.  Desviava o olhar para a rua, percebia carros e pessoas, todos com um ar ameaçador. Depois de tanta adrenalina, os pensamentos acalmaram. O motorista seguiu por um túnel e ela se assustou com a própria imagem refletida no vidro, não tinha sossego. O motorista percebeu e perguntou:
-  Você tá com medo de quê?
- Me assustei com meu rosto no vidro, estava distraída.
Mas ela achou estranha a familiaridade com que ele falou com ela. Notou que ele começou a olhar pelo espelho e ela se desviava do campo de visão. Mas ele percebeu que ela fugiu e voltou ao papo.
- a noite hoje está boa para andar de moto, né?
- parece...
- eu tenho moto, moro ali perto da sua residência.
Ela gelou! O que ele queria dizer com isso? Por que insinuar essa proximidade? Seria ele o assaltante daquela noite? Ela começou a rezar baixinho. Nem pensou mais que ele teria algum tipo de aviso dos espíritos sobre o medo dela ali no carro.
Chegaram e ela desceu rápido, nem dando tempo de pedir para ele esperar ou voltar para pegá-la. Ela agora estava na rua, sozinha, por sua conta e risco. O pavor com o taxista foi tão grande que ela nem notou que estava na rua deserta, sozinha, em frente a casa de uma desconhecida.  Olhou o número e tocou a campainha, que parecia uma galinha esganiçada. Quem teria uma campainha de tanto mau gosto? Logo depois desse pensamento constatou: virei a velha solitária e reclamona dos gatos. 
Hera veio abrir a porta pessoalmente. Convidou-a para entrar. O hall era colorido e cheio de imagens orientais. Hera estava vestida de branco e ofereceu um chá. Ela aceitou e parecia estar confortável. Hera pediu para ela esperar. Tudo parecia tão agradável que ela se sentia como um bebê no colo da mãe, de tão tranquila.
Mas a espera foi longa, quase uma hora, pois Hera estava com outro paciente. Nesse tempo, Lígia resolveu olhar mais de perto o lugar. Xeretou de forma discreta, mas percebia uns elementos estranhos ali naquele ambiente. Na sala em que tinha ficado acomodada, os móveis eram discretos e em tons pastéis. Mas no fundo tinha uma estante negra, de laca, destoando com o clima mais esotérico da antessala. Passou os olhos pelos livros, na lombada nomes estranhos, alguns de magia, outros de esoterismo. Pegou um deles que tinha uma imagem enigmática na capa. Folheou outro e viu animais imaginários desenhados no meio do texto. Os títulos eram sinistros. Pegou um que tinha um raio violeta na capa, num fundo preto. Abriu as primeiras páginas e não entendeu aquele idioma, parecia latim. Fechou e guardou. Depois pegou outro, com uma silhueta do corpo humano na capa. Começou a folhear e percebeu que era um manual com indicações de cortes e suturas.  Achou curioso, talvez fosse um livro de medicina oriental. Passou mais algumas páginas e viu indicações de algum tipo de ritual de magia, entendeu que aquilo não era um tratamento, mas magia negra. Fechou o livro imediatamente, não sabia nem porque aquilo estava ali. Quem tem algo assim?
O tempo passava e nenhum barulho e nem movimento vinham do andar de cima. Será que Hera tinha dormido? Ela resolveu continuar explorando a casa para espantar a ansiedade. Subiu os degraus de forma silenciosa para ninguém notar que ela havia desobedecido a orientação de ‘aguarde aqui’. Olhou as três portas do corredor. Se perguntou onde estariam fazendo o tratamento que provavelmente era muito silencioso, pois nada fazia barulho. Ela olhou para a porta da esquerda e se aproximou. Deu três batidinhas de leve e abriu a maçaneta. Olhou a sala na penumbra, mas notou um corpo deitado na maca. Devia ser o outro paciente. Entrou na sala e chegou mais perto, pois dali da entrada só via os pés. Ao se aproximar levou um choque, o homem tava morto. Ela quis gritar, mas colocou a mão na boca. Por que tinha um morto ali? Mas os olhos não saiam de cima daquele corpo, escrutinavam cada canto da face e ela viu cortes e suturas, como o que tinha acabado de ver no livro. Entre o choque e a constatação foram breves segundos, ela estava diante de um homem que foi sacrificado. Precisava fugir dali urgentemente. Saiu silenciosa, fechando a porta e descendo as escadas muito cuidadosamente. Quando estava quase na sala ouviu a voz de Hera:
- Ligia, pode subir, é a sua vez...
Ela gelou. O que faria? Apressou o passo até a porta da rua, mas quando tocou na maçaneta sentiu os pés amolecerem. Olhou em direção à escada e viu o rosto de Hera com um sorriso sinistro. Lígia entendeu que tinha sido drogada: o chá!.Se esforçava, mas não conseguia mais manter a consciência. Apagou.
 Quando acordou, estava na maca, com a luz apagada, sozinha e em silêncio. Ainda tinha as agulhas presas ao corpo, mas estava viva. Olhou em volta, a cabeça doía, em cima da bancada máscaras cirúrgicas. Será que tinham tirado algum órgão do seu corpo? Não sentia nenhum machucado. Olhou rapidamente para si, passou as mãos pelo corpo, aparentemente nada tinha sido tirado dela. Mas se sentia diferente.
Levantou e abriu a porta da sala. Tudo estava escuro. Chamou por Hera, que não respondeu. Ela não sabia o que fazer. Não era possível ter sido esquecida ali. Por que não a mataram? Por que a amiga Soninha sabia da consulta ou por que o procedimento continuaria depois? Ela não ia esperar para ter essa resposta.
Tirou as agulhinhas que conseguiu ver pelo corpo. Vestiu-se rapidamente e saiu de lá, deixando o dinheiro da consulta na mesinha da sala, para parecer que não sabia de nada. No fundo, pagava mais uma vez por não ter sido morta.
Depois de fechar a porta atrás de si, se viu sozinha, na rua deserta, numa hora da noite que nem ela saberia dizer qual era. Caminhava sem medo, sem nenhum tipo de receio. Ela já estava num estado tão desolado, que nem medo conseguia sentir. Era isso, não dava mais para sentir, tinha ficado esgotada. Chegando na avenida próxima, olhou um ônibus vindo e o pegou. Não sabia para onde iria, mas tinha o motorista para perguntar. Curiosamente o ônibus seguia para o seu bairro, mas estavam longe e demoraria quase uma hora até lá. Ela sentou tranquila e esperou pacientemente o retorno ao lar. Tinha a impressão de ter deixado alguma coisa naquela casa diabólica, mas o que quer que seja, poderia ficar lá para sempre.

Simone de Paula - 30/7/2016
Este conto foi criado para o concurso de contos da Revista Pulp Fiction do site Homo Literatus. Infelizmente não fiquei entre os dez publicados, mas foi ótimos experimentar fazer um conto de suspense aos moldes dos filmes do mestre Alfred Hitchcock.

 

Passe o sal

Chovia. Conversávamos no trânsito. Precisamos parar.

Nos sentamos em uma mesa milimetricamente escolhida, tinha uma certa distância da janela, a luz era confortável, ninguém por ali poderia nos ouvir e não éramos miras fáceis dos estranhos que entravam, de qualquer forma os temidos não eram eles, eram os outros.

Os garçons nos olham ansiosos, devem imaginar o que será que escolheremos, se somos do tipo vinho, ou do tipo água. Estão em pé, só o que podem saborear são nossos diálogos escapados, ou seus pensamentos, contas a pagar que valem os minutos em pé, pensam nas famílias em casa, na goteira, esperam um ônibus mais vazio hoje a noite para que possam sentar e talvez dormir um pouco, quem sabe depois disso ter ânimo bastante para um abraço caloroso na mulher que dorme, para pequenas surpresas entre suas curvas e cabelos.

Nunca saberemos, tudo é imaginação.

O que, no entanto, soubemos ali foram outras coisas.
O lugar supostamente perfeito não era assim por suas dimensões geométricas calculadas, era uma outra lógica, a de que nada se contém, não tem forma, moldura, estampa. Esse ponto era de construção, palavra por palavra, afeto por afeto. Não tínhamos que ser qualquer coisa definida, a faca dilaceradora dos requisitos cedeu espaço, éramos o mais sinceras que nos cabia, pulmão cheio de ar, respirávamos o alívio de ser sem critério.

No final ela contou da experiência que teve: entendi o valor de um dia, de uma noite, estou viva, tudo importa.

Pensei: tudo importa.


Maria Laura, São Paulo, italiano no Itaim. 

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Entalada


Houve um tempo em que eu engoli, engoli muito. A oferta vinha de fora e eu botava pra dentro. Nem sempre eu queria e nem sabia o que fazer com aquilo. Mesmo na ânsia, na precipitação do vômito, me segurava e mantinha lá, engolido. Se estava na borda da garganta, na boca do estômago ou no meio do intestino, não importava, só sei que estava dentro. Eu sorria, com os lábios bem apertados, para não correr o risco de despejar o que deveria permanecer engolido.
Entalada, sem meios de expelir o que já tinha saturado, uma revolta interna fez supurar aquela merda toda e numa tosse incontrolável vomitei, vomitei muito, incessantemente. Os jatos jorravam, se lançavam como foguetes buscando o céu. Me senti vazia, culpada, envergonhada. Meu entorno mostrava eras de entorpecimento. Eu não me reconhecia na vomitona e nem sabia como recuperar a engolidora. Respirei, olhei, recuei. Comi tudo de novo, aquele vômito nojento, disforme, como um animal que se alimenta dos seus próprios excrementos. Escondi tudo de novo, não de mim, do mundo.
Se antes o que foi pra dentro já não era agradável, longe disso, agora era impossível permitir que avançasse demais corpo adentro. A garganta permanentemente irritada, sufocada, atulhada daquele gosto acre e repugnante. Mas eu não podia, voluntariamente, vomitar novamente. Segurava, firme, silenciando as palavras para não correr o risco de regurgitar tudo de novo.
Tento esconder de mim a cena da erupção vinda das minhas entranhas. Cubro os olhos, mesmo num entorno aparentemente imaculado. Aquilo que nem está mais ali, visível, é a marca catártica outrora reconhecida. Imaginava fora o que via dentro. Aquilo era meu? Sim, era meu. Mas como tinha ido parar ali. Bem, vindo de lá, de lá de fora. Como mandar embora? Eu não aceitava o fato que saísse assim, cru, disforme, horrendo, visceral, grotesco. Queria que viesse ao mundo educado, aceitável, encantador. Não era assim, não tinha entrado assim, tinha sido forçado. Foi obrigatório. Não havia dentro de mim o que pudesse processar aquilo, não tinha outra via para sair.
Parei, parei tudo. Se me movo, sejam pernas, braços, boca ou olhos, corro o risco de botar tudo de novo pra fora e culpada, recolher, como um animal. Parei, não sei.  

Simone de Paula - 20/10/2016

 The scape of the artist - Jan Fabre

Sugestão de música para ouvir lendo o conto: Queens of the stone age - 'no one knows'
https://www.youtube.com/watch?v=K9WOBsPVjFE 
letra e tradução aqui:
https://www.letras.mus.br/queens-of-the-stone-age/64333/traducao.html

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Leitura


Desceu do ônibus no lugar errado, estava distraída com a leitura, coisa que não aparecia há muito tempo. A distração sempre vinha de outros lugares. Do tempo, das pessoas tropeçando com a freada, um corpo estranho diante do seu, da distância, do afeto que ficava longe de quando em quando, as perguntas velozes sem respiro dentro da sua cabeça chacoalhando pelas ruas de São Paulo.
O livro falava da menina no trem, era o começo da história, mas se identificou com a passagem, de um caminho ao outro, mais uma. Era um dia de sol, ainda não estava escondido, naquele lugar aparecia céu, aparecia azul e branco, dava pra ver que no rosto de cada um tinha luz, sombra, contorno.
Não sabia daquele ponto, naquela rua, viu uma grande escada a poucos passos da calçada, era o meio da cidade, um atalho novo, gente sentada, casal namorando, calcinha rendada aparecendo pelo jeans desbotado, músico, instrumento, milho cheirando margarina, pão de queijo azedo, dogão prensado, grafite de criatura que parecia a cuca malvada, canteiro de terra, corrimão e cimento.
No tempo de uma escada coube um jeito de ver, jeito que tem vida de fora e vida de dentro.
Andou calma, o mais que pode, passo, degrau, prestou atenção na quantidade de tudo nesse espaço de tempo, nesse espaço de espaço.
Entrou no metrô, abraçou o livro, cheirou as páginas quase coladas, respirou folha e palavra, não sabe como seguirá o desenho dessa narrativa.
Novo capítulo.

Nada a fazia mais viva do que atravessar a rua e depois ser conduzida, pela entrega.


Maria Laura, São Paulo, Rua Paulistânia, Metrô Vila Madalena.