sexta-feira, 19 de agosto de 2016

O crime do rei

Era uma vez um rei que vivia moribundo na torre do castelo. Ele estava trancado há tantos anos naquele lugar que nem sabiam mais que idade tinha, mas o motivo da prisão era relembrado todo ano, no dia da entrada da primavera.
O rei não manifestava sua presença, ninguém ao certo sabia se ele ainda vivia. Mas a bandeira vermelha estendida na janela no primeiro dia de primavera fazia todos acreditarem que ele ainda estava lá.
Desde a ocasião da prisão do rei, o castelo ficou mais soturno, vazio e silencioso. O trânsito era apenas de serviçais levando e trazendo alimentos e notícias de fora.
Certa manhã, uma caravana se aproxima da cidade e deixa todos em polvorosa. Lá de dentro sai um rapaz acompanhado de um padre. Dirigem-se para uma estalagem e perguntam sobre o castelo e o rei. O estalajadeiro, vivido e esperto, não explica muito bem o que acontecia ali, mas oferece uma bebida quente, afinal, ainda estavam no final do inverno. Os viajantes aceitam e pedem um quarto para passarem a noite e um prato de comida. Adélia chega com sopa de cevada e porco assado com batatas. Os dois a olham, agradecem a refeição e pedem mais bebida. Quando ela vem servir, frei Orlando pergunta sobre o castelo e o rei. Adélia é jovem, simpática e conversadeira. Logo vai contando a história. 
- Sabe, o rei cometeu um crime grave. Quando souberam, logo o prenderam na torre do castelo. 
- Mas que crime ele cometeu? Perguntou o frei curioso.
- Ah, ninguém sabe direito como foi, mas no último dia do inverno, ao cair da tarde, o rei saiu para dar um passeio com seu cavalo. Ele cavalgava muito bem e adorava ver anoitecer em cima do cavalo. Mas naquela noite, ele sofreu um acidente, caiu e machucou a perna. O cavalo o deixou ali e fugiu, não se sabe por que, mas o rei, voltou de lá transtornado, faminto e com a roupa toda rasgada. Alguns dias depois disso, ele foi condenado. O rei virou réu. Está lá, confinado até hoje.
- Mas porque o rei foi condenado por cair do cavalo? Perguntou Inácio, o rapaz que estava com eles.
- Aí é que ninguém sabe. Mas o estado em que o rei voltou não esconde que um crime foi cometido por ele, disse Adélia, e voltou para a cozinha depois do grito forte do pai, o estalajadeiro.
Frei Orlando e Inácio não entenderam, mas perceberam que algo estava mal contado nessa história.
Dormiram aquela noite, pois a viagem tinha sido longa. No dia seguinte, foram até o castelo e tentaram agendar uma audiência com o rei, para ver o que diriam os serviçais. A resposta foi bem discreta:
- o rei está adoentado e não poderá recebê-los.
Intrigados, deixaram uma carta com o serviçal e pediram que a entregasse. Na carta, Inácio dizia que acreditava que o rei estava sofrendo de um tipo de doença mágica e que ele saberia curá-la. Informou onde estavam hospedados e que ficariam por ali até os primeiros dias da primavera.
Voltaram para a cidade e perceberam que algumas pessoas pareciam estar sob um efeito hipnótico, pois não falavam muito sobre o tal crime, apenas o antes e o depois. Entre a queda do cavalo e a aparição do rei, ninguém sabia de nada. E pior, nem sabia porque tinha sido condenado.
Os dias passaram e nenhuma resposta do rei. Eles já estavam ficando sem esperança de conseguirem encontrar o monarca. Caso a primavera chegasse e não tivessem falado com o rei, deveriam deixar a cidade.
Mas, chegou o tal último dia de inverno. As pessoas estavam agitadas, ansiosas, como se esperassem algum tipo de acontecimento. Inácio deixou o frei descansando a tarde e resolveu dar umas voltas nos arredores da cidade. Sozinho, foi cavalgando, pelo caminho mais seguro e aberto. Notou que perto de um riacho, haviam casas muito simples, aparentemente abandonadas. Se aproximou delas e resolveu olhá-las por dentro. Eram três casas, separadas por um belo jardim. Notou que não eram jardins comuns, mas um era de ervas, outro de flores e o último de frutas. Percebeu também que tinham muitos insetos no jardim, causando até asco, pois pareciam possuir aquela flora., sem controle. Chamou, mas ninguém atendeu. Logo na entrada da primeira casa, se deparou com sua imagem, se assustou. Tinha ali um espelho gigante que impedia que se passasse para os outros cômodos. Ficou atônito e saiu. Na segunda casa, entrou e percebeu tudo vazio, sem mobília, com as janelas abertas, como se fossem apenas paredes. Andando distraído, sentiu um desequilíbrio. Notou um buraco no chão, tinha um poço dentro da casa. Ele quase caiu ali. Assustado, saiu rápido. Mas não poderia deixar de olhar a casa seguinte. Entrou e parecia uma casa normal, confortável, com cheiro de comida fresca e lareira acesa. Teve vontade de ficar ali, repousar, passar o resto dos dias naquele ambiente. Sentou-se, fechou os olhos e percebeu um ar suave. Ao fundo ouvia uma música agradável, na voz mais bela que já tinha escutado. Os pensamentos o envolviam e o corpo dele parecia ficar anestesiado. Tudo era tão bom que não poderia ser verdade. Um pensamento breve atravessou aquele estado inebriado: 'o rei virou réu'. Inácio pulou da cadeira e tentou sair correndo dali. Mas quando tentou abrir a porta, percebeu que estava preso. A casa começou a mudar, escurecer, envelhecer. Inácio começou a gritar por ajuda e tentar sair dali.
Ele entendeu que o rei tinha passado por ali, pois se via quase enlouquecendo naquele ambiente. Mas como sairia de lá?
Não ouvia nada, estava preso, confinado, sozinho, apavorado. 
Quando o frei acordou, notou a falta de Inácio e viu o bilhete sobre o passeio. Frei Orlando sabia de algumas feiticeiras na região, mas nunca tinha falado delas para Inácio. Ficou apavorado em pensar que o rapaz poderia encontrá-las e ser aprisionado. A noite caía, mas o frei seguiu os passos do rapaz. Chegando à beira do riacho viu as casas e a festa das feiticeiras diante de uma linda fogueira. Elas riam e cantavam por terem encontrado um novo ídolo para as próximas primaveras. O velho rei não servia mais e agora teriam mais força e energia com aquele jovem e belo rapaz.
Frei Orlando interrompe a festa, tentando se proteger das feiticeiras com palavras mágicas. Elas não aceitam aquela presença e o expulsam. Ele sabe que se elas quiserem, ficam com o rapaz e ainda o impedem de qualquer ação. Decide apelar para a última possibilidade e grita desesperado:
- Inácio é de linhagem real!
As três param para ouvir melhor.
- Inácio é filho de uma de vocês com o rei. Concebido naquela noite e enviado para ser criado fora da cidade. Ele voltou para encontrar sua história e agora vocês querem aprisioná-lo.
As três se olharam e refletiram sobre aquela informação. Da casa do espelho sai uma feiticeira mais velha e ordena que parem o ritual. Ela olha para o frei e o chama para vir mais perto. Quando ele chega, ela o autoriza a pegar Inácio. E diz apenas uma frase:
- Leve-o para junto do pai. Eu libero o rei e toda a cidade do feitiço. Avise-os para não se aproximarem demais daqui novamente.
Frei Orlando volta e nota o castelo com as luzes acesas e uma grande festa de primavera acontecendo na cidade. Inácio, sem lembrar de nada, é apresentado ao rei como seu filho e herdeiro e assume seu lugar ao lado do pai.

Simone de Paula - 19/8/2016

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