sexta-feira, 12 de agosto de 2016

O Canto


Freqüentava as missas religiosamente aos domingos. Desde cedo, tinha sido orientada a seguir toda a ritualística que envolvia aquele sistema de fé.
Chegava à Igreja e sabia onde sentar, como se comportar, que cara fazer ao rezar e a postura certa na hora de comungar. Era uma pequena católica.
No cerimonial mais caprichado da missa principal do domingo, os cantores do coral soltavam a voz e inundavam o templo com a potência encantadora daquela melodia. Ela acompanhava tamborilando alegremente no assento do banco de madeira. Olhava profundamente para os vitrais que se iluminavam sob a luz do sol e sentia as notas penetrarem na sua alma.
Na adolescência, pensou em ser freira, almejava o sentimento de plenitude que experimentava durante as missas. Desistiu, imaginando seguir a carreira de cantora, ou instrumentista.
Estudou muito e entrou na faculdade de Música. Aprendeu a tocar instrumentos, conheceu biografias e teorias de grandes mestres do universo sonoro, vivia animada com a possibilidade de ser capaz de produzir em si mesma aquele sentimento que conhecia desde a infância.
Treinava muito, todos os dias, mas não conseguia sentir aquilo que imaginava e lembrava. Acreditava que isso acontecia pela inexperiência, ainda era aprendiz.
Ela não falava nem para a família e nem para os professores ou colegas musicistas, mas vivia frustrada, decepcionada, pela falta que sentia no peito, na alma.
Tentava chegar aos nomes daquele sentimento como forma de poder se apropriar dele. Êxtase, amor, paixão, inspiração, entusiasmo, encanto, deslumbramento, enlevo, arroubo, arrebatamento. De pensar em cada um, experimentava novamente o que tinha sentido.  Mas como era possível ela não atingir nenhum deles enquanto tocava a música que mais amava, ou cantava no tom mais sutil que poderia conseguir?
Obstinada, tecnicamente se tornou muito boa. Talentosa, afinal vivia por uma paixão, foi convidada para participar de um festival de inverno. Ensaiou muito e estava ansiosa para ver se diante do público poderia ser tomada novamente.
Mas a vida é mesmo uma pregadora de peças e ela, a dez dias do festival, pegou um resfriado forte, seguido de dor de garganta, tosse e febre. Nos primeiros dias da doença, se sentia entregue a um som, totalmente inebriada por um bálsamo sonoro. Era sonho, delírio ou realidade?
Foi ao médico, precisava melhorar e retomar os últimos ensaios. Lá, na sala de espera, bastante lúcida pela apreensão em que se encontrava, começou a ouvir uma música vinda da casa ao lado. Parecia um ensaio, uma aula. Sabia que dali alguém cantava e seu corpo começava a ser afetado, animado, excitado. Aquela voz grave do cantor, assumindo com força a bela canção italiana, permitiu a ela perceber que nunca, jamais, o êxtase poderia ser produzido por ela mesma. Era no encontro com o outro, na surpresa do desconhecido que o arrebatamento pode se dar.
O reconhecimento a tranqüilizou. Pensou que se ela sentia isso no encontro com o outro, sua habilidade musical poderia produzir também aquilo em mais alguém. Como por encanto a dor passou, a garganta nem mais parecia raspar. Ela suspirou e decidiu: serei uma musicista!


Simone de Paula - 12/08/2016

Inspirado na bela canção italiana cantada em voz grave todas as tardes da semana.

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