sexta-feira, 15 de julho de 2016

Vida colaborativa

Aninha se viu feliz da vida no micro apartamento que tinha acabado de alugar. Passou meses ensaiando esse grande momento da vida, morar sozinha. Ela, que tinha nascido numa família numerosa, só pensava em solidão.
Tinha mudado com o básico: colchão, fogão, televisão. Só ela mesmo para trocar a geladeira pela televisão e o microondas pelo fogão. Mas ela era assim mesmo, meio diferente, meio esquisita.
Aninha cozinhava a beça, sabia fazer receitas elaboradas, e nos últimos anos tinha assumido o comando culinário na casa da família. Eles sentiriam a sua falta. Ou, pelo menos, sentiriam fome.
Ela tinha muitos planos, queria transformar o micro apartamento num espaço gastronômico, aqueles de refeição para pouquíssimas pessoas, sob o comando dela. Ela tinha ensaiado isso com os pais e os irmãos. Agora seria moleza, porque naquela família, criticar era o esporte preferido.
Sentada no seu colchão, ela olhava pela janela e sonhava com a primeira receita. Alguma massa seria mais fácil. Produtos frescos, comprados na hora, elaboração na quantidade exata. Perfeito. Como o sonho era antigo, ela escolheu o apartamento perto de um supermercado e com feira semanal na rua paralela. Ela estava bem, feliz, ansiosa.
Daquele ponto, no chão, ela olhava o teto, que parecia meio velho. Mesmo recém pintado, não escondia a idade e as 'rugas'. Ela decidiu que o chão não seria um bom ponto de vista para os convidados / clientes que ela receberia. Bem, era preciso comprar mesa e cadeiras.
No dia seguinte, Aninha saiu pelas ruas do bairro tentando encontrar o estilo de mesas e cadeiras dos bares, ou mesmo das residências, que ela insistia em tentar captar seu interior através das janelas abertas. Sim, tudo era meio antigo e mal conservado, velho mesmo. Parou no bar do seo Antonio para tomar um café e tentar conseguir uma mesa e quatro cadeiras. Papo vai, papo vem e o velho cedeu uma das 4 mesas que ele tinha lá. Disse que pediria para o rapaz das bebidas conseguir uma de plástico para completar o espaço vazio. Ela levou a mesa nas costas e ficou feliz, a casa agora tinha o lugar dos clientes. Mas podia dar uma melhorada naquela mesa e principalmente nas cadeiras. Aninha era muita habilidosa com as mãos e comprou lixa, pincel, verniz e tinta colorida. Fez uma restauração simples, mas deu outra cara para o micro apartamento, que subiu de nível. Parecia até ter ficado um pouco maior.
Decidiu que ia seguir esse método colaborativo na vida. Fez um bolo invertido de maçãs com caramelo e foi visitar os pais. Chegando lá. trocou o bolo por um jogo com  pratos, copos e talheres para quatro pessoas. Prometeu levar o sorvete de passas ao rum na semana seguinte, pois era uma troca injusta, tantas louças por um bolo. Agora precisava de tolhas e os tais clientes.
Notou que na rua da feira tinha uma costureira, dona Jeny. Entrou na pequena oficina de costura e começou a conversar sobre a dificuldade que tinha para fazer barra reta. A senhora estava disposta a explicar e ensinar. Ela aprendeu e resolveu trocar uma fornada de pão de azeitonas com patê de queijo pela toalha de mesa. Dona Jeny fez e aceitou de bom grado a oferta da comida.
Tudo estava pronto, mas se fosse servir bebidas, precisava de uma geladeira e isso bagunçava a sua estrutura mínima e o novo estilo de troca. Voltou ao bar do seo Antonio e perguntou se poderia gelar bebidas ali. Ele topou, mas queria em troca um pote de sardela, que ele adorava e o fazia lembrar da mãe, dona Carmela. Ela topou, mas inclui um pacote de gelo na troca.
Aninha, quando saiu de casa, com as economias que tinha feito da sua mesada nos últimos 4 anos de estudos, não imaginava que seria tão boa no lance de trocas. Adorava trocar as necessidades dela pelos serviços culinários.
Agora ela estava pronta para receber os primeiros clientes. Quem seria? Pensou nos pais, eles aceitariam, mas não poderia ser assim, era fácil demais. Depois pensou em fazer um jantar para seo Antonio, dona Jeny e os acompanhantes deles. Mas eles tinham colaborado com ela, ela não poderia pedir para pagarem um jantar. Lembrou dos amigos da faculdade, mas será que eles viriam?
Ela não tinha meios de se divulgar, nem internet, nem nada. Os recursos estavam acabando e ela precisava descolar uma grana rapidamente, pois o mês iria virar e ela ainda tinha que pagar as contas da casa. Se acalmou e pensou no menu do primeiro jantar. Enquanto escolhia os pratos lembrou de um ex professor, que dizia que adorava ver as versões renovadas de pratos básicos como macarrão ao sugo ou mesmo minestrone. Era isso, os professores que ela mais gostava, que a tinham inspirado a pensar a vida além do curso de Economia que ela tinha feito. Fez um patê de azeitonas e foi pra casa dos pais. Trocou por uma hora de internet pelo patê, mas levou um potinho extra, caso precisasse de mais tempo de wifi.
Mandou um email para ele e passou seu número de celular. Convidou o professor para ser o primeiro cliente e trazer com ele três amigos. Disse que o menu seria surpresa e passou o valor. Disse que se ele aceitasse a oferta, que deveria lhe mandar uma mensagem.
Foi embora e sofreu por 4 horas deitada no colchão e olhando o teto. Mas ele respondeu, aceitou e disse que sábado, 19 horas, seria perfeito. Ela confirmou e começou a preparar as coisas.
Tinha só um dia para fazer tudo. Começou pela massa fresca. Amassou, descansou, abriu e cortou. deixou secar num varal improvisado. Teve a certeza de que realmente uma mesa naquela casa era fundamental. Pelou os tomates e fez o molho mais demorado da sua vida, que apurou durante horas no fogo bem baixo. Aproveitou a sobra dos pães de azeitona que tinha feito para dona Jeny, transformou em torradinhas para a sardella do seo Antonio. A entrada estava pronta, a massa também. Agora era hora de fazer a reinvenção da sobremesa. O velho e bom pudim de leite ganhou um toque especial de laranja e whisky, versão que tinha ouvido de um antigo professor de filosofia. Tinha que gelar a sobremesa e lá foi ela para o bar do seo Antonio. Arrumou toda a casa, toalha e louças na mesa, colchão camuflado, encostado na parede como se fosse uma tela num ateliê de pintura. O figurino dela era o melhor, avental e lenço na cabeça.
Ao toque da campainha, o disparo do coração e o sorriso satisfatório aparecem instantaneamente. O professor Marcos Lineu, como ele gostava de ser chamado, entrou animado. Com ele vieram seu amigo Flávio, sua mãe, dona Emília e a antiga amiga de Aninha, Carla. Ele a convidou para fazer uma boa surpresa. O jantar aconteceu, eles se divertiram e a comida estava deliciosa.
Sozinha no seu micro-apartamento, cansada do trabalho daquela noite. ela se deu conta de que tinha ligado a televisão umas três vezes no mês. Aquilo não cabia mais na vida nova. Decidiu que a trocaria por uma mini-geladeira, que seria muito melhor, pois não poderia sair no meio do jantar para pegar o pudim no bar. Aninha ainda notou que precisava de um rádio, faltava música para acompanhar o jantar. Isso também seria troca, talvez uma receita de brigadeiros de café para o irmão. Mas antes, precisava fazer mais uns três jantares para garantir o mês. Ela estava feliz, mesmo que nada disso durasse mais do que o primeiro mês, ela já tinha aprendido o maior importante da vida: o valor que tem aquilo que fazemos e as relações que estabelecemos.



Simone de Paula - 15/7/2016

Inspirado no livro 'Papel Manteiga', de Cris Lisboa

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