sexta-feira, 24 de junho de 2016

Faro fino

Sentiu um cheiro leve de cinzas adocicadas. Foi tomada pelo espírito do cão perdigueiro que a acompanhou durante todo o tempo de vida que lembra de si mesma. Era assim quando sentia um cheiro distante, um som longínquo ou um sabor inesperado. Ativou o faro e moveu os olhos em busca de um sinal daquele odor. Sabia que era um perfume conhecido, familiar, mas ao mesmo tempo não ter uma lembrança que garantisse a conexão entre o sentido e a coisa, era incômodo. Notou que se esforçava para lembrar o que era aquilo que tinha aquele cheiro. Na cabeça a pergunta insistia, "que cheiro é esse? que cheiro é esse mesmo?" De repente, numa movimentação imprevista, viu logo atrás de si uma jovem perdida no olhar e incessante na mastigação. As mãos pegavam o alimento do pacote e enfiavam na boca que já aguardava aberta, com restos de alimento mastigados e uma língua recolhida a espera de mais, e mais. Foi tão captada por aquela boca que parou uns segundo olhando, afetada. Como manda a boa educação, tirou os olhos, virou em outra direção. Mas agora sabia que cheiro era aquele e desejava ardentemente ficar hipnotizada olhando aquele movimento mecânico e veloz: pega! arremeça!  mastiga!  engole! Mas não podia olhar, não devia invadir a intimidade da desconhecida. Se fosse menos 'educada', olharia insistentemente, até cansar da cena grotesca. Foi despertada pelos braços da tentação. Nem pensava mais porque gostava tanto daquilo. Se tivesse que classificar, não seria possível ser comida, nem alimento, não sabia que nome dar, a não ser o próprio nome pelo qual chamavam. Que inusitado, era uma coisa que tinha apenas o nome pelo qual era chamada. Tão exclusiva que nem entrava em outras categorias agrupadoras. Com um esforço, poderíamos fazer um conjunto com aparentados, mas era uma forçação, pois aquilo era aquilo. Naquele momento percebeu que gosto e sabor ainda estavam associados na sua memória. Se sentisse um, pensava no outro, garantindo assim que nem precisaria consumir o que era classificado na sua mente, como 'mastigação infinita com mínimo prazer'. Mentira, era uma delícia! Era uma coisa com um gosto médio, mas que na sua boca ficava delicioso. Com um cheiro estranho, que no seu nariz acendia uma atração irresistível. Um pecado leve que ela nem sabia porque tinha entrado no campo das proibições. Depois de tantos pensamentos e reflexões, o anúncio da descida na estação de metrô a leva a outra ação e automaticamente ao esquecimento desse mundo paralelo em que estava, pensando nas suculentas pipocas de canjica do saquinho cor-de-rosa.

Simone de Paula - 22/6/2016


3 comentários:

  1. Adorei....
    Se não tivesse a foto da pipoca nossa imaginação teria voado mais longe. Kkkk
    Parabéns
    Bjs

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  2. Adorei....
    Se não tivesse a foto da pipoca nossa imaginação teria voado mais longe. Kkkk
    Parabéns
    Bjs

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