quinta-feira, 2 de junho de 2016

Círculo

Saindo da terapia outro dia, ali naquela sala entre sofás e cadeiras que acolheram tantas palavras, amigos que nasceram no tempo antes de cada sessão, silêncios escondidos na espera, agora tinham três homens e um deles era Vinicius, nos conhecemos pelos caminhos do Jung, ele me pergunta: você só encontrou mulheres na Índia? Digo que não, estive todo o tempo acompanhada por um homem. No caminho de volta, no metrô, na lembrança do trem e do forte barulho dos trilhos correndo em Mumbai, da gente correndo, das portas abertas, penso: não um, alguns. 

Meu primeiro amigo foi Adi, em malayalam, sua língua materna, seu nome significa Adão. Quem escolheu foi a avó paterna por tradição, dias depois de seu nascimento é preparado o ritual, o pai o segura sentado na folha de bananeira, a pequena senhora em seu luminoso sari se aproxima, repete em seu ouvido cinco vezes, Adi, Adi, Adi. O nome está dado, agora é seguir com o destino e o ensinamento dos deuses.
O pequeno tinha três meses, forte e carinhoso foi o primeiro com quem pude falar português em Kerala, em plena e completa compreensão. Eu contava a ele das cores da baratinha e do poti poti da borboleta. Ele me respondia com olhares demorados, mãozinhas apertando meu dedo e comendo meus cabelos. Eu o chamava de bebê orgânico. Ainda o chamo assim. Me lembro do seu banho, primeiro de óleo, cabeça e corpo, depois o sabonete, a bucha feita de folha seca, a água da fonte. Sua saúde é água. Seu dourado é côco. Meu amor, imediato.

Depois Dileesh.
Um moço todo bonito em generosos sorrisos. Ele não sabia que no Brasil abraçamos todo tempo, gostamos da nova prática. Conversamos por horas e horas, me conta que é ateu, que luta pelo seu país, que sofre seu país, não crê em um deus que não os olha, em mistério algum diante de um prato de comida escasso, vê uma criança na rua, sabe da sua fome e tormento, sua mão toca a garotinha de cabelos sujos, cara suja, roupas rasgadas, o que sabe é o que nomeia e o nome disso para ele é: Shiva não está aqui, nem seu filho Ganesh removeu os obstáculos dessa família inteira dividindo a rua entre restos e ratos. 
Ele me explica que o hinduísmo sustenta o sistema de castas. As castas dividem a sociedade, segmentam e aprisionam pessoas. Um "intocável" alí é e será alvo de inúmeras humilhações, seu corpo será tido como impuro, seu trabalho pesado e a vida, quase nada. Considerada a casta mais baixa, pouco pode erguer-se sob esse solo desnutrido. Compreendo sua fúria, compartilho de sua indignação e ainda assim aquele próprio encontro era para mim sinal de uma magia que não controlo, não toco nem vejo, mas sei.

Quanto a você, meu bem.
Não foram todas as noites que dormi ao seu lado, foram as mais importantes, não porque você estava ali, mas porque você estava ali. Enquanto eu em pleno movimento, contínuo aprendizado, viva, em contato, não com um mundo sereno e suave, não, mas com a natureza das minhas camadas escondidas, reveladas em corpo, cheiro, grito, em braço, pescoço, fala, escuta, pulso, ouvia.
Do mesmo jeito que faço agora com os silêncios da distância. Como a música, pegue minha mão e minha vida toda também, dançamos. 

Maria Laura

3 comentários:

  1. Respostas
    1. Laurinha, minha avó vestida num manto pernambucano - ou talvez a outra avó numa roupa típica portuguesa - repetiu ao meu ouvido vini, vini, vini. E assim foi.

      Sua delicadeza no trato com as palavras é quase um perfume que sentimos, quase um calor ou frio que toca nossa pele, é um sentimento que flui vagarosamente até nos encantar e nos fazer se apaixonar.

      Continue a "despetalar a flor" escrevendo sobre ela, sobre os rios e ratos - que seja! Queremos sentir os dedinhos do pequeno "menino orgânico", queremos saborear a saudade da falta ou a alegria da presença.

      Obrigado pelos delicados contos.

      Excluir