sexta-feira, 6 de maio de 2016

Quanto vale uma biografia?

Com uma única vida pode-se escrever mil autobiografias. Não é necessário mentir, basta deslocar uma palavra, mudar um olhar para iluminar um outro aspecto da realidade enterrada.

Certa manhã, tal parágrafo me transportou para minha própria biografia. Afinal, o que eu contava de mim mesma? Depois de tantos anos de análise será que eu podia dizer que tinha contado mais de uma versão da minha história.? Minha História, só isso era o bastante para confirmar que não. Penso em versões, no plural, mas não me desapego da história singular. Seria mesmo singular a nossa história ou também o que é singular pode se multiplicar?
Nesse último mês, o contato com um livro em particular tem me feito muito bem. Não que ele me dê alegria ou bem-estar, mas porque ele me eleva a um estado em que o horizonte pode ser repensado, revisitado. Do lugar que me encontrava conseguia olhar o horizonte como de uma praia. O mar, sem dúvida, possibilita uma visão ampla e sem muitos entraves, mas ainda assim ele limita ao térreo. Você pode imaginar algum tipo de além do horizonte ou mesmo inventar distorções da forma reta que ali se impõe ao olhar. Mas, sem dúvida, o limite é aquele mesmo do ponto de onde se olha, do ponto de partida do olhar, do olho pelo qual você olha.
Quando fui elevada, naquela grua lenta e delicada, pude observar o mesmo horizonte. Mas enquanto eu era içada, ele se expandia, se inclinava, se reformulava. O mesmo horizonte observado do mesmo lugar pode, ainda assim, ter um novo ponto de vista. E mais, enquanto você se mexe, ele também se mexe em sua direção.Ele não permanece estático, ao contrário, te acompanha. Não se coloca da mesma forma que antes, tenta te manter vendo o mesmo, oferecendo novos ângulos, prismas, revivendo diante do seu olhar.
Como fazer isso com nossa própria biografia quando fixamos nossa história no horizonte e cada face daquilo que se vê é entendida, mas não se movimenta?
Nessa condição de elevação que vivi, o horizonte também estava fixado, mas o movimento a que fui  lançada foi tão interessante que me possibilitou ver realmente de outro lugar.
Como é possível fazer isso sem essa condição de elevação?
Escrevendo aqui me lembrei do filme Up! Algo ali também o tira do chão, possibilitando uma reformulação do horizonte intocado.
Usei o corpo para indicar uma condição de pensamento. Mas como poder viver isso no pensamento? Será que consigo fazer isso com a minha história através da escrita?
Pensando como fazer, mais uma referência cinematográfica me ocorre, pois os irmãos Watchovisk já fizeram isso no Matrix. Mas sempre o corpo é o mobilizador dessa  condição. O fazer com o corpo quando ele já se distanciou tanto da própria história?
Pode-se dizer que algo no meu destino mudou, não apenas com essa leitura, mas com os anos de análise. Será que o destino muda por ter visto novos significantes no horizonte ou o destino de fato tem um sentido próprio?
O entendimento do passado pode proporcionar novidades no futuro. Vemos diferente, escolhemos melhor, experimentamos. Mas esse destino teria mudado mesmo?
E, se o passado fosse diferente? Nesse içar, o passado pode ser diferente e que diferença teria esse destino? Parece que ele traria algo realmente muito distante daquilo que seria uma alternativa de destino para o antigo passado.
Bem, o fato é que não dá pra saber só testar. E, se é uma questão de descobrir como faz, não dá pra pensar como faz, só pra fazer.
Reconheço que opto com frequência pela escrita didática, explicativa, reflexiva. Mas e a ficção da biografia, onde entra? Como poder fazer biografia sem personagem, sem situação, sem conflito e sem sentimentos? Uma biografia se faz com pessoas, com acontecimentos e esses não podem ser construídos na teoria, podem ser imaginados, mas não vividos antes mesmo de inventados.

O exercício será breve. Algumas versões e vejo como será possível ser içada e ver um horizonte em movimento.

Simone de Paula - 04/02/2015

Conto inspirado no livro 'Autobiografia de um espantalho', de Boris Cyrulnik

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