sexta-feira, 13 de maio de 2016

Bárbara

A imagem era a da família feliz. A típica foto das últimas férias de verão. Roupas leves e coloridas num cenário de praia paradisiaco. O que se via era o sucesso de muitas horas trabalhadas e o modelo certo a seguir.
Bárbara estampava aquela foto muito bem. Cabelos bem cuidados, com mechas douradas, um loiro clássico. Biquíni escondido pela saída de praia. Estava discreta, esse era o seu estilo. Maquiagem leve e o sorriso que demonstrava uma única coisa; 'saco cheio'.
Filha tardia da geração feminista, que queimou sutiãs, mas não liberou as mulheres. Agora todas trabalham muito, ganham seu próprio salario e não vendem mais seus corpos para homens opressores. Se exibem de outra forma, menos vulgar. Esse era o discurso, fazia sentido, só podia ser verdade.
Naquele dia de sol brilhante, Bárbara estava deitada na beira da piscina tentando tomar um pouco de sol. Era o segundo dia da viagem de férias. A cada cinco segundos, tinha que olhar os filhos que brincavam na piscina. Não era preocupação com a segurança deles, mas o chamado insisttente das crianças.
Nem a saída de banho ela tinha tirado e os dois berravam sem parar. Ela olhava com um sorriso amarelo. Lucas tinha 9 anos e Mariana tinha 7. O marido, Cadu, se ausentava a cada chance: ia comprar algo para beber ou buscar toalhas. Ele fugia dos apelos das crianças.
Bárbara era uma jovem adulta de 37 anos que tinha cumprido os dez mandamentos da mulher moderna, mas não tinha ganhado o reino dos céus. Estava tudo ali, exceto ela, ou melhor, o que ela imaginou que sentiria caso tudo estivesse ali.
Olhava para os filhos e pensava: "como pude criar duas crianças tão chatas?" . Olhava para o marido e tinha certeza de nunca ter imaginado que o Cadu, cheio de ginga, se tornaria esse barrigudinho que arrasta chinelos na beira da piscina.

Diante de uma realidade tão apática, ela decretou:
"Estou deprimida."
Cadu olhou assustado e não entendeu, mas também nem quis perguntar, pois a 'culpa' seria dele. E, em resposta a essa declaração, ele pergunta:
"Quer uma cerveja?"
E ela logo resoonde:
"Querer, eu queria, mas não posso, engorda! Me traz uma água!"

Era inconcebível para ela pensar que todo o investimento da vida tinha dado nisso. Só isso.
Ter pronunciado aquela frase, "estou deprimida", como se esse diagnõstico representasse bem a frustração de não saber afinal, o que realmente queria para sua vida. Decretado aquela sentença numa situação aparentemente banal e corriqueira foi o melhor e o pior que aconteceu a ela. Uma vez pronunciado o fracasso, não tinha mais volta, agora era a hora de fracassar.
Sem se dar conta, ela foi estragando tudo que tinha construído com o melhor de si. Em casa, ela chamou o pedreiro inúmeras vezes, pois teve vazamento no banheiro, rachadura no batente da porta do quarto e as lâmpadas queimavam toda semana. Perdeu a chave da porta de entrada e o controle remoto do portão da garagem. Não aguentava mais, aquela casa a estava enlouquecendo. 
Enquanto a casa mostrava os buracos que ela tinha tentado vedar com reboques diversos, no trabalho as coisas também fugiam dos planos. Mudança de chefe inesperada, agora ela iria trabalhar com aquela que era 'um trator', que se dedicava integralmente à carreira. Ela sabia que ia ser muito exigida. Precisava da força-tarefa para passar por esse período. 
Resolveu fazer um jantar de família para pedir ajuda. Foram no restaurante preferido das crianças, assim elas ficariam mais quietas. Se sentaram, pediram todos os pratos depois de muita agitação e ela começou a tentar falar. Cadu olhava para ela, como se a ouvisse com muita atenção. As criança o imitavam e ela começou:
"Estou com uma nova chefe, muito exigente, preciso de vocês."
As crianças pareceram curiosas, como se ela fosse brincar de caça ao tesouro com eles, indicando as próximas pistas. Cadu olhou com um misto de 'lá vem louça toda noite na minha conta', e 'agora sexo só nas férias'. 
Ela continuou:
"Em casa cada um vai fazer um pouco. Vocês vão deixar o quarto em ordem e fazer a lição sem ninguém precisar mandar. Vocês já são bem grandinhos para isso. E você Cadu, assume o macho alfa, cuida da casa, dá um jeito nessas coisas que vivem quebrando, ou chama o 'marido de aluguel'. Eu não posso pensar em mais nada, agora estou na missão 'promoção'."
Terminaram o jantar, foram para casa, nada mudou.
Marcou o psiquiatra para pedir receita da bendita fluoxetina, não podia ter uma depressão no meio de seu caminho. Saindo da sessão, receita na mão, pressa para chegar à farmácia. Toca o celular e era o Cadu. Ele tinha uma bomba: 
"Fui demitido..."
O primeiro pensamento foi de desespero total. Ela desligou e começou a chorar, era uma tragédia o marido sem emprego e todos os planos dela indo por água abaixo. Mas que planos? Ela nem se dava conta que chorava por algo que nem sequer tinha imaginado, ela chorava por ter perdido o que nem existia. 
O próximo passo foi o de sempre, ligar para a mãe, que dizia para ela ficar no pé dele, não deixá-lo se acomodar em casa e virar um vagabundo. Ela não precisava de mais um filho.
Naquela noite, teria uma conversa séria com ele, precisava se impor antes que ele resolvesse usufruir do trabalho e do salário dela. Era hora de colocar os pingos nos 'is'. Quando chegou, ele tinha preparado um lanche para o jantar e as crianças pareciam mais calmas. Ela não sabia como fazer, pois teria que iniciar um conflito naquele ambiente tranquilo. Deixou a conversa para o dia seguinte.
Os dias se passaram e enquanto o Cadu não se recolocava profissionalmente, mantinha as coisas bem organizadas em casa. Ele sabia gerenciar as coisas e as crianças precisavam apelar menos por atenção. Ela finalmente entendeu o que era tão caótico e desgastante. Eram muitos apelos do mundo, o interno e o externo, e era impossível responder a todos. Alguns pratos não serão equilibrados, vão cair, quebrar e tudo bem.
Mas Bárbara ainda tinha mais um choro para controlar, e não era o seu, era a mãe, que não largava do seu pé, insistente sobre ela não deixar o marido se acomodar. A influência era grande e ela não via como silenciar aquela que tinha feito tantos sacrifícios por ela.
Bárbara notou que tinha se tornado uma silenciadora, essa era sua missão na vida. Enquanto ouvia apelos externos, calava os apelos internos. Esses nunca teriam chance de ecoar dentro dela e indicar as saídas.
Numa noite de sexta-feira, assistia o filme 'o diabo veste prada' ao lado de Cadu. Percebeu que a saída era fechar os ouvidos para todos e experimentar ouvir a si mesma. Desligou o celular naquela noite, pela primeira vez em anos. Apagou as luzes da sala e disse para o Cadu que dormiria mais tarde. Ficou sozinha ali, tentando escutar, mas era só silêncio dentro dela. Não poderia tratar isso como mais uma missão na vida. Resolveu que pelo menos para escutar a si mesma ela teria tempo. 

Simone de Paula - 13/5/2016





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