terça-feira, 31 de maio de 2016

Sentimento de fim.

Ele sabia que não podia continuar. Não havia mais espaço para o mesmo. O próprio corpo avisava que o fim estava próximo. Seu corpo andava apagado, sem energia, com uma respiração arrastada e a mente longe. Sentia no corpo um basta, como se o tempo estivesse acabando.

Ele sentia o fim e pensava: sou um homem de 40 anos, saudável e ativo... não há nada que diga que estou morrendo. E por quê sinto que sim, que estou morrendo? Todos dizem: você tem uma carreira estável, bem sucedida, tem família, tem casa, tem isso, tem aquilo, não há nada de errado! Besteira da sua cabeça! Tentava se convencer disso, mas não conseguia deixar de sentir no corpo e não encontrar palavras para definir esse sentimento.

Um dia encontrou um amigo que não via  muito tempo e diante da pergunta: “Como anda a vida?” Suspirou e falou: "Acho que não anda... na verdade nada falta, tudo está perfeitamente colocado onde deveria". E o amigo rapidamente respondeu: 'Ixi, vamos pedir mais bebida, você está tomado pelo tédio. Eu acho o tédio o pior tipo de fim.' 

Carla - 31/05/2016

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Projetando um quadro

Marina chegou da rua carregada de sacolas e entrou em casa fazendo mais barulho do que o normal. Deixou a porta entreaberta e tentava se desvencilhar da bolsa quando ouviu um batuque de leve no batente da porta, seguido de um 'oi', sussurrado. Era Orlando, o vizinho de apartamento que tinha mudado recentemente. Ela olhou com simpatia e retribuiu o 'oi', seguido de um sorriso, traço comum em Marina. Se isso fosse um filme de Hollywood, ele perguntaria se ela precisava de ajuda. Mas como estamos em São Paulo, na vida real, ele mal se preocupa com ela. Ele só pensa na vontade dele, que foi o que o levou até lá após ter notado a presença dela. Ele segue a conversa comentando que ele tinha comprado um quadro e a chamou para ver a pintura. Ele sabia que ela gostava de arte e achou que ia 'pegar bem', exibir sua nova aquisição. Ela achava Orlando legal, estava acostumada com os assédios leves dos homens e lidava bem com isso. Larga as coisas e vai. Ela já conhecia o imóvel, pois tinha visto enquanto ainda estava vazio. Após a breve reforma, ele, por sua personalidade sociável, já tinha feito questão de mostrar o projeto pronto. Ele via valor no que fazia e gostava de se exibir por isso. Marina entra e vê uma tela apoiada no chão. Ele então conta a história daquele quadro. Um amigo, professor de artes e pintor, tinha feito esse quadro para ele colocar no apartamento novo. Ele achava bem bonito e o artista tinha explicado que na técnica usada, tinham muitas camadas de tinta e muito tempo de trabalho. Realmente aquela pintura não causou nada em Marina, mas a relação dos dois era sempre muito cordial e ela comentou algo simpático: "a filha de um casal de amigos queria brincar com tintas e disse para a mãe que queria desenhar cores. Ela queria só pintar, sem desenhar nada, e expressou dessa forma. Crianças são tão simples no seu modo de pensar, tão diretas, né?" Com essa frase ele imaginava suavizar a indiferença pela obra que ele tanto valorizou, mas ele ouviu como sendo uma dica para ele ir direto à cantada que ele tanto ensaiava. E ele foi direto ao ponto: "a gente podia sair um dia desses, né?" Marina não sabia se sairia ou não com Orlando, tinha toda a problemática de serem vizinhos, ainda que para os homens essa problemática não existe, apenas a fantasia erótica, também plantada por Hollywood. Já que ele é esperto e entende as palavras dela, até mesmo o que ela não disse, ou imaginou não ter dito, resolveu falar mais de si, através dos quadros. "Eu gosto de pintura abstrata, aliás, adoro. Mas esse quadro tem tudo sob controle, bem arrumado, bem colocado. Não tem a invasão incerta das cores, o rompante violento das pinceladas, os efeitos mais sombrios ou carregados das camadas de tinta acumuladas." E ela continuou, se ele queria saber como conduziria um romance com ela, deveria entender que seria preciso mais ousadia. "A vida é isso, uma surpresa que se joga em cima de nós e provoca o desconforto do desconhecido dentro dos elementos mais familiares." Ele era realmente um cara vivido e bem tranquilo no trato com as mulheres. Olha para ela e completa: "É bonita, né? Vou colocar nessa parede. Fica bom?" Ela sorri e concorda num movimento automático. O silêncio chega, ela se dirige para a porta e ele segura a mão dela, e pergunta de novo: "o que você vai fazer hoje à noite?" Ela sorri e dá um tchau sem resposta. Como ela tinha pensado, ele vai ter que se esforçar mais do que isso.

Simone de Paula - 27/05/2016


"Nem com todas as palavras seria possível" - Jeff Chies

Qualquer semelhança com pessoas ou fatos da vida real, é mera coincidência. Mas essa pintura é real, o artista é real, eu adoro e quero na minha sala de estar.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Hoje, sou mar.

Meu cabelo não é mais tão importante como era. Já não consigo passar tanto tempo me penteando. As pernas que antes precisavam estar descobertas, hoje servem para me levar. Nem lembro se estão cobertas ou não. Geralmente estão cobertas, mas porque sinto muito frio.

O corpo todo, na verdade, passa a ser outro. Serve para outra coisa. Se apresenta diferente. O último livro lido já não precisa ser citado para que a inteligência possa ser admirada. Hoje, me questiono em vários momentos: o que é a tal inteligência? Em que momento passamos a olhar e sentir nossa história como um todo? 

Parei de dissecar cada cena, cada sentimento e cada olhar. Como se fossem os responsáveis por tudo. Me pergunto quando esse tudo virou todo? Quando no espelho me vejo uma, não mais aos pedaços. Nem como uma onda, mas a deriva, como um mar.

Carla - 24/05/2016

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Hoje



Hoje acordei mais velha, mais sábia, mais paciente, mais coerente.
O tempo faz isso com a gente, nos coloca num estado de existência e nos tira do estado de graça.
Ontem mesmo me perguntaram sobre meu passado, sobre mim. Notei que eu era outra, não no que eu reconheço como personalidade produtiva, mas principalmente na aventura de experimentar a vida.
Hoje eu sei da vida. Parece que tudo já se encontra mapeado, desenhado, definido.
Surpresas viriam de onde? Já não sei. Tento relembrar de onde elas vinham, mas elas estavam justamente no meio do caminho, na própria vida.
O que acontece conosco? Que espécie de Tempo nos bloqueia num determinado ponto da vida em que o futuro insiste em ser o modelo do passado e tudo se recobre como ‘Hoje’?
Consigo falar, dizer sobre conceitos, mas pouco crio sobre poesia.
Sei o que já foi. Sei o poderia voltar, num estado apocalíptico do mundo, se futuro entrasse em colapso e precisássemos retornar ao já vivido. Não consigo imaginar o futuro, nem pela inovação, nem pela criação.
Sim o tempo passa e leva com ele a euforia da vida, o acender do desejo, deixando apenas o assombro pela fragilidade e o medo de viver o que foi sonhado e ficou esquecido.

Simone de Paula - 20/5/2016


colagens explosivas de Rael Brian



"quem tem olhos pra ver o tempo 
soprando sulcos na pele 
soprando sulcos na pele 
soprando sulcos?

o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina
sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma

(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)

acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim

e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando
"

Viviane Mosé (Psicanalista e Poeta)

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Caminho

Estou de volta
Sei que cheguei em um lugar diferente, me reconheço e desconheço
Me dou conta do que me compõe
Percebo que estou viva
Há muito para fazer
Estamos abraçados, não vou a lugar algum
Todos os meus sentidos ainda estão em trânsito
Minha terra agora é ampla
Somos um novo desejo diante do que era escondido
Você me pediu para segurar a sua mão
Minha caminhada de agora em diante, é contigo
Vamos juntos
Encontrar os tons do amor

Maria Laura, São Paulo.

terça-feira, 17 de maio de 2016

A fragilidade que nos acompanha.

Eu estava lá em cima, depois de muitas horas caminhando. Tinha planejado essa trilha há muito tempo e fazia todo o sentido para representar os últimos anos da minha vida. Superação, planejamento, luta e vitória. Essas eram as palavras que tal caminhada representava. A paisagem era inacreditável! Como o mundo podia ser tão imenso? Olhar em volta e saber que não é sempre que você tem essa imagem, me tirou o fôlego. Todos estavam muito excitados com o fato de ter atingindo o topo.
Eu? Eu não consegui estar só feliz e recompensada nesse momento. Algo no meu corpo me intrigou. sentia no intimo uma fraqueza. Diria que internamente estava trêmula. Do que tremia? Tinha passado as últimas horas provando quanto eu podia, quanto conseguia ser forte. Pois é, mas parece que o recado era outro.
Meu corpo tomou conta do momento e me deixava claro que diante do 'topo' eu era outra coisa. Uma coisinha frágil, eu diria. Frágil diante do que é a vida. Acho que nunca mais vou acreditar tão cegamente nas vitórias.
          Carla - 18/05/16

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Bárbara

A imagem era a da família feliz. A típica foto das últimas férias de verão. Roupas leves e coloridas num cenário de praia paradisiaco. O que se via era o sucesso de muitas horas trabalhadas e o modelo certo a seguir.
Bárbara estampava aquela foto muito bem. Cabelos bem cuidados, com mechas douradas, um loiro clássico. Biquíni escondido pela saída de praia. Estava discreta, esse era o seu estilo. Maquiagem leve e o sorriso que demonstrava uma única coisa; 'saco cheio'.
Filha tardia da geração feminista, que queimou sutiãs, mas não liberou as mulheres. Agora todas trabalham muito, ganham seu próprio salario e não vendem mais seus corpos para homens opressores. Se exibem de outra forma, menos vulgar. Esse era o discurso, fazia sentido, só podia ser verdade.
Naquele dia de sol brilhante, Bárbara estava deitada na beira da piscina tentando tomar um pouco de sol. Era o segundo dia da viagem de férias. A cada cinco segundos, tinha que olhar os filhos que brincavam na piscina. Não era preocupação com a segurança deles, mas o chamado insisttente das crianças.
Nem a saída de banho ela tinha tirado e os dois berravam sem parar. Ela olhava com um sorriso amarelo. Lucas tinha 9 anos e Mariana tinha 7. O marido, Cadu, se ausentava a cada chance: ia comprar algo para beber ou buscar toalhas. Ele fugia dos apelos das crianças.
Bárbara era uma jovem adulta de 37 anos que tinha cumprido os dez mandamentos da mulher moderna, mas não tinha ganhado o reino dos céus. Estava tudo ali, exceto ela, ou melhor, o que ela imaginou que sentiria caso tudo estivesse ali.
Olhava para os filhos e pensava: "como pude criar duas crianças tão chatas?" . Olhava para o marido e tinha certeza de nunca ter imaginado que o Cadu, cheio de ginga, se tornaria esse barrigudinho que arrasta chinelos na beira da piscina.

Diante de uma realidade tão apática, ela decretou:
"Estou deprimida."
Cadu olhou assustado e não entendeu, mas também nem quis perguntar, pois a 'culpa' seria dele. E, em resposta a essa declaração, ele pergunta:
"Quer uma cerveja?"
E ela logo resoonde:
"Querer, eu queria, mas não posso, engorda! Me traz uma água!"

Era inconcebível para ela pensar que todo o investimento da vida tinha dado nisso. Só isso.
Ter pronunciado aquela frase, "estou deprimida", como se esse diagnõstico representasse bem a frustração de não saber afinal, o que realmente queria para sua vida. Decretado aquela sentença numa situação aparentemente banal e corriqueira foi o melhor e o pior que aconteceu a ela. Uma vez pronunciado o fracasso, não tinha mais volta, agora era a hora de fracassar.
Sem se dar conta, ela foi estragando tudo que tinha construído com o melhor de si. Em casa, ela chamou o pedreiro inúmeras vezes, pois teve vazamento no banheiro, rachadura no batente da porta do quarto e as lâmpadas queimavam toda semana. Perdeu a chave da porta de entrada e o controle remoto do portão da garagem. Não aguentava mais, aquela casa a estava enlouquecendo. 
Enquanto a casa mostrava os buracos que ela tinha tentado vedar com reboques diversos, no trabalho as coisas também fugiam dos planos. Mudança de chefe inesperada, agora ela iria trabalhar com aquela que era 'um trator', que se dedicava integralmente à carreira. Ela sabia que ia ser muito exigida. Precisava da força-tarefa para passar por esse período. 
Resolveu fazer um jantar de família para pedir ajuda. Foram no restaurante preferido das crianças, assim elas ficariam mais quietas. Se sentaram, pediram todos os pratos depois de muita agitação e ela começou a tentar falar. Cadu olhava para ela, como se a ouvisse com muita atenção. As criança o imitavam e ela começou:
"Estou com uma nova chefe, muito exigente, preciso de vocês."
As crianças pareceram curiosas, como se ela fosse brincar de caça ao tesouro com eles, indicando as próximas pistas. Cadu olhou com um misto de 'lá vem louça toda noite na minha conta', e 'agora sexo só nas férias'. 
Ela continuou:
"Em casa cada um vai fazer um pouco. Vocês vão deixar o quarto em ordem e fazer a lição sem ninguém precisar mandar. Vocês já são bem grandinhos para isso. E você Cadu, assume o macho alfa, cuida da casa, dá um jeito nessas coisas que vivem quebrando, ou chama o 'marido de aluguel'. Eu não posso pensar em mais nada, agora estou na missão 'promoção'."
Terminaram o jantar, foram para casa, nada mudou.
Marcou o psiquiatra para pedir receita da bendita fluoxetina, não podia ter uma depressão no meio de seu caminho. Saindo da sessão, receita na mão, pressa para chegar à farmácia. Toca o celular e era o Cadu. Ele tinha uma bomba: 
"Fui demitido..."
O primeiro pensamento foi de desespero total. Ela desligou e começou a chorar, era uma tragédia o marido sem emprego e todos os planos dela indo por água abaixo. Mas que planos? Ela nem se dava conta que chorava por algo que nem sequer tinha imaginado, ela chorava por ter perdido o que nem existia. 
O próximo passo foi o de sempre, ligar para a mãe, que dizia para ela ficar no pé dele, não deixá-lo se acomodar em casa e virar um vagabundo. Ela não precisava de mais um filho.
Naquela noite, teria uma conversa séria com ele, precisava se impor antes que ele resolvesse usufruir do trabalho e do salário dela. Era hora de colocar os pingos nos 'is'. Quando chegou, ele tinha preparado um lanche para o jantar e as crianças pareciam mais calmas. Ela não sabia como fazer, pois teria que iniciar um conflito naquele ambiente tranquilo. Deixou a conversa para o dia seguinte.
Os dias se passaram e enquanto o Cadu não se recolocava profissionalmente, mantinha as coisas bem organizadas em casa. Ele sabia gerenciar as coisas e as crianças precisavam apelar menos por atenção. Ela finalmente entendeu o que era tão caótico e desgastante. Eram muitos apelos do mundo, o interno e o externo, e era impossível responder a todos. Alguns pratos não serão equilibrados, vão cair, quebrar e tudo bem.
Mas Bárbara ainda tinha mais um choro para controlar, e não era o seu, era a mãe, que não largava do seu pé, insistente sobre ela não deixar o marido se acomodar. A influência era grande e ela não via como silenciar aquela que tinha feito tantos sacrifícios por ela.
Bárbara notou que tinha se tornado uma silenciadora, essa era sua missão na vida. Enquanto ouvia apelos externos, calava os apelos internos. Esses nunca teriam chance de ecoar dentro dela e indicar as saídas.
Numa noite de sexta-feira, assistia o filme 'o diabo veste prada' ao lado de Cadu. Percebeu que a saída era fechar os ouvidos para todos e experimentar ouvir a si mesma. Desligou o celular naquela noite, pela primeira vez em anos. Apagou as luzes da sala e disse para o Cadu que dormiria mais tarde. Ficou sozinha ali, tentando escutar, mas era só silêncio dentro dela. Não poderia tratar isso como mais uma missão na vida. Resolveu que pelo menos para escutar a si mesma ela teria tempo. 

Simone de Paula - 13/5/2016





quinta-feira, 12 de maio de 2016

Volto

Hora de me despedir
Não sei o meu que fica
O sou depois do que recebi
Nada será como antes
Um mundo me espera


Espero que possa receber meu carinho

Maria Laura

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Quanto vale uma biografia?

Com uma única vida pode-se escrever mil autobiografias. Não é necessário mentir, basta deslocar uma palavra, mudar um olhar para iluminar um outro aspecto da realidade enterrada.

Certa manhã, tal parágrafo me transportou para minha própria biografia. Afinal, o que eu contava de mim mesma? Depois de tantos anos de análise será que eu podia dizer que tinha contado mais de uma versão da minha história.? Minha História, só isso era o bastante para confirmar que não. Penso em versões, no plural, mas não me desapego da história singular. Seria mesmo singular a nossa história ou também o que é singular pode se multiplicar?
Nesse último mês, o contato com um livro em particular tem me feito muito bem. Não que ele me dê alegria ou bem-estar, mas porque ele me eleva a um estado em que o horizonte pode ser repensado, revisitado. Do lugar que me encontrava conseguia olhar o horizonte como de uma praia. O mar, sem dúvida, possibilita uma visão ampla e sem muitos entraves, mas ainda assim ele limita ao térreo. Você pode imaginar algum tipo de além do horizonte ou mesmo inventar distorções da forma reta que ali se impõe ao olhar. Mas, sem dúvida, o limite é aquele mesmo do ponto de onde se olha, do ponto de partida do olhar, do olho pelo qual você olha.
Quando fui elevada, naquela grua lenta e delicada, pude observar o mesmo horizonte. Mas enquanto eu era içada, ele se expandia, se inclinava, se reformulava. O mesmo horizonte observado do mesmo lugar pode, ainda assim, ter um novo ponto de vista. E mais, enquanto você se mexe, ele também se mexe em sua direção.Ele não permanece estático, ao contrário, te acompanha. Não se coloca da mesma forma que antes, tenta te manter vendo o mesmo, oferecendo novos ângulos, prismas, revivendo diante do seu olhar.
Como fazer isso com nossa própria biografia quando fixamos nossa história no horizonte e cada face daquilo que se vê é entendida, mas não se movimenta?
Nessa condição de elevação que vivi, o horizonte também estava fixado, mas o movimento a que fui  lançada foi tão interessante que me possibilitou ver realmente de outro lugar.
Como é possível fazer isso sem essa condição de elevação?
Escrevendo aqui me lembrei do filme Up! Algo ali também o tira do chão, possibilitando uma reformulação do horizonte intocado.
Usei o corpo para indicar uma condição de pensamento. Mas como poder viver isso no pensamento? Será que consigo fazer isso com a minha história através da escrita?
Pensando como fazer, mais uma referência cinematográfica me ocorre, pois os irmãos Watchovisk já fizeram isso no Matrix. Mas sempre o corpo é o mobilizador dessa  condição. O fazer com o corpo quando ele já se distanciou tanto da própria história?
Pode-se dizer que algo no meu destino mudou, não apenas com essa leitura, mas com os anos de análise. Será que o destino muda por ter visto novos significantes no horizonte ou o destino de fato tem um sentido próprio?
O entendimento do passado pode proporcionar novidades no futuro. Vemos diferente, escolhemos melhor, experimentamos. Mas esse destino teria mudado mesmo?
E, se o passado fosse diferente? Nesse içar, o passado pode ser diferente e que diferença teria esse destino? Parece que ele traria algo realmente muito distante daquilo que seria uma alternativa de destino para o antigo passado.
Bem, o fato é que não dá pra saber só testar. E, se é uma questão de descobrir como faz, não dá pra pensar como faz, só pra fazer.
Reconheço que opto com frequência pela escrita didática, explicativa, reflexiva. Mas e a ficção da biografia, onde entra? Como poder fazer biografia sem personagem, sem situação, sem conflito e sem sentimentos? Uma biografia se faz com pessoas, com acontecimentos e esses não podem ser construídos na teoria, podem ser imaginados, mas não vividos antes mesmo de inventados.

O exercício será breve. Algumas versões e vejo como será possível ser içada e ver um horizonte em movimento.

Simone de Paula - 04/02/2015

Conto inspirado no livro 'Autobiografia de um espantalho', de Boris Cyrulnik

quinta-feira, 5 de maio de 2016

O trem



Ontem no trem de Mumbai perguntei para uma garota se estava no vagão certo, ela me responde que sim, busco por um lugar sentada, coisa que pode valer quase ouro aqui na Índia. Entro correndo, me despeço da Tati ali fora enquanto ela tira uma última foto e então começo a olhar as minhas companheiras de viagem de Churchgate até Malad pela Western Line, ouço suas vozes estridentes, sinto o cheiro de um dia todo de trabalho envolto em tantas cores, tecidos e um cortante sol, mastigam comidas picantes e fritas enroladas no jornal, falam no celular, entram ambulantes, brincos, pulseiras, mulheres seguram os filhos tropeçando, até camarão fresco passou pela venda, deve ser uma longa jornada pensei, a de cada um.

Já estou acomodada quando a mesma garota volta, entra onde estou e me diz que está errado, esse trem é da linha rápida e não vai parar em todas as estações. Começo a me movimentar quando do meu lado uma outra pega meu braço e diz para ficar, ela é jovem, tem um lenço cobrindo todo rosto, mas seus olhos ficam em evidencia, assim como a força de suas palavras. Elas conversam em hindi, uma explica para outra que ele irá sim onde preciso, que a linha rápida é até o meio do caminho, falam como se cada uma defendesse uma causa, a velocidade, o destino, a hora de descer tornaram-se questões importantíssimas ali. Agradeço as duas, me sinto protegida por elas, é a verdade do trem. As vezes parece uma briga, mas do jeito de cada uma, do jeito delas no mundo, estão apenas argumentando. 

Venho todo o caminho pensando no dia que tive com minha amiga pelas ruas da Índia, pelo bonito de ser alguém que conta com alguém, pela coisa simples e amorosa que é saber-se em um terreno de solidariedade, mesmo que não o veja com frequência, saber que essa terra não tem nome, ela pode ser qualquer parte do mundo, se o mundo mora do lado de dentro.

Era noite, Malad estava próxima, a pequena muçulmana se levanta em Goregaon, ela já vai sair, guardou o celular, atravessou pernas e saris, chegou até a porta, ia partir, antes disso se virou, olhou nos meus olhos e quase me disse
: pronto, logo é a sua hora de saltar, eu fico aqui. Está tudo bem.
Eu olho para ela e digo em hindi: tatá! Ela sabe que me despeço, agradeço e confio não só em nossa troca de sorrisos, mas em uma troca de carinho de longe que nos demos, ouvimos e nos soubemos.

Cheguei em casa acompanhada.



 

terça-feira, 3 de maio de 2016

Simples adeus!

Era um momento de dar adeus. Seria uma simples despedida. Obrigada por tudo. Até breve. Avise quando chegar. Era para ser simples, mas o fato é que o adeus ficou em mim. Não fui eu a ir embora, mas passei o dia como se tivesse ido.

Pensei no que esse adeus estaria precipitando... e, claro! Cheguei no meu desejo de travessia, de estar em trânsito constantemente.


Carla - 03/05/2016