sexta-feira, 8 de abril de 2016

O arroz da falecida

Seu Osvaldo era um homem de hábitos. Desde jovem tinha planejado a vida: estudar, começar a trabalhar cedo, encontrar uma boa moça para casar e descansar na aposentadoria. Tudo tinha sido como ele imaginou. Estudou Contabilidade, ingressou num pequeno escritório próximo à sua casa e conheceu Helena, uma moça romântica que sonhava em ter uma família grande, com muitos filhos. Namoraram, noivaram, casaram. Um casal à moda antiga, até porque, eram atigos.
Infelizmente o destino não deu à Helena os filhos que ela queria, mas ela gostava da vida ao lado de Seu Osvaldo, pois ele lhe dava segurança. Acordavam cedo, ele saía para o trabalho e ela cuidava das coisas de casa. Ele voltava para o almoço, regularmente às 12:30h. No período vespertino, Helena encontrava algumas amigas para atividades de artesanato ou leitura. À noite, após o jantar, dormiam.
Um dia, Helena não acordou, havia morrido durante o sono, um ataque cardíaco. Seu Osvaldo foi mais uma vez atacado por um golpe na sua vida, mas não mostrou o abalo que sentiu, não era um homem de emoções.
Decidiu que seguiria a rotina, pois Helena faria falta, mas ele poderia cuidar de si mesmo. O mais difícil seria cozinhar, pois ela era uma ótima cozinheira. E o que ela melhor sabia fazer era o arroz, que arroz!
Nos dias seguintes ao enterro, almoçou num restaurante próximo, mas não tolerava muito a comida de lá, excessivamente salada. Passou a acordar cedo e fazer o trivial, mas ainda assim nem chegava perto da comida de Helena. Que falta ela fazia!
Os amigos do escritório notaram que Seu Osvaldo emagrecia e parecia entristecido, resolveram apresentar Ester, amiga solteira da esposa de Claudinho, afinal, um homem não poderia passar o resto da vida viúvo e sozinho. Como ter esposa estava nos planos, Seu Osvaldo topou. Ester era uma ótima moça, mais velha, não tinha casado porque ajudava a mãe com os irmãos mais novos. Ela gostou de Osvaldo, o chamou assim desde o primeiro dia que o conheceu. Casaram. Ela era uma ótima dona de casa, e segundo os amigos, uma cozinheira perfeita.
Osvaldo então lhe pediu o primeiro prato, após o matrimônio, ARROZ! Ela achou graça e fez, mas ele quando comeu disse: não está igual ao arroz da falecida.
Essa tentativa de fazer o arroz igual o da falecida se seguiu por muitos meses. Osvaldo cada vez mais acreditava que a falecida Helena usava algum método ou tempero secreto, pois era difícil uma mulher que cozinhava tão bem como Ester não acertar. Afinal, ela sabia fazer de tudo na cozinha.
Ester, de outro lado, testava de tudo, pois mais do que agradar o marido, tinha virado uma questão de honra superar o tal arroz da falecida. Como podia uma morta atrapalhar sua vida? Chegou até a consultar uma vidente, para tentar trazer a receita do túmulo. A cigana Yolanda tentou contato com os mortos, mas Helena não se comunicou. Ester se desanimou, resolveu que Osvaldo deveria entender que ela não tinha tal competência.
A vida foi seguindo, Ester conhecendo melhor a vizinhança, fez amizade com as antigas amigas de Helena. Eram na sua maioria mulheres que se reuniam para trocar receitas, dicas, leituras, rezas. Num almoço de sexta, Ester contou para Osvaldo que naquela tarde iria participar do clube de leitura das vizinhas. Osvaldo achou bom, mas não apoiou muito o programa. Pensava que era agora que Ester não ia mesmo mais cuidar dele. Mas ele pensava a cada dia que talvez não devesse ter casado de novo, que Helena podia estar sentindo ciúmes dessa nova vida e atrapalhando o casal.
Ele voltou para o trabalho, ela foi para o clube de leitura.Ela se divertiu, as mulheres a receberam muito bem. Assumiu esse novo hábito, participar do encontro das mulheres.
Durante o primeiro mês, ela contou para Osvaldo toda a programação, as conversas, as fofocas. Mas ele pouco se importava. Isso a chateava e ela foi se calando, mas não deixava de comparecer a um encontro.
Numa manhã chuvosa, Osvaldo sai para trabalhar e diz que vai chegar um pouco mais tarde para o almoço, Ester fica apreensiva, pois é dia de comentarem o último capítulo de 'Madame Bovary', livro que estavam lendo há dois meses e ela pretendia terminar ainda naquela manhã. Correu com as coisas de casa e sentou para ler. Adormeceu, afinal, dias chuvosos e leitura eram um convite ao cochilo. Acordou assustada com o cheiro de fumaça que vinha da cozinha. Chegou em cima da hora, só tinha queimado o fundo da panela. Para disfarçar, colocou toda a comida em travessas, assim Osvaldo nem notaria, afinal, justo o que ele mais faz questão de comer, o arroz tinha passado do ponto.
Osvaldo chegou, se serviu de pouco arroz, afinal, marcava insistentemente que ela não sabia fazer aquela iguaria, e na primeira garfada sentiu algo diferente. Comeu mais uma garfada e abriu um sorriso largo, soltou um suspiro e falou: é o arroz da falecida! Levantou da cadeira, cantarolou, abraçou Ester, estava num dos dias mais feliz da sua vida.
Ester pensou: então era isso, ela deixava o arroz queimar todos os dias. Helena é que era esperta, usava as manhãs para suas leituras e cochilos e Osvaldo imaginava que ela era a mulher mais dedicada a ele. Uma coisa era certa, Ester foi à Igreja, rezou uma missa e acendeu uma vela para Helena. Fizeram as pazes e aquela receita especial ficou o segredo entre elas.

Simone de Paula - 08/04/2016


Inspirado numa história que minha Vó Laura contava todas as vezes que alguém queimava o arroz. E, lembrada no último domingo, diante de uma panela de arroz queimado aqui em casa.

3 comentários:

  1. Ah vida como ela é, sempre surpreendente! Esse texto é um afronte aos perfeccionistas e um ensinamento valioso,como dizia Zeca " Deixa a vida me levar, vida leva eu "

    ResponderExcluir