sexta-feira, 1 de abril de 2016

Apagão

Noite, interior, sala de estar.
Era assim que a cena estava montada quando aconteceu o blecaute. 
As luzes da cidade apagaram de uma vez, logo depois que  Eliana tinha entrado em casa.
O primeiro pensamento era sobre ter dado tempo de subir de elevador, evitando assim as escadas sob a luz de emergência, ou pior, no escuro, tateando os degraus. Depois pensou que tinha tido sorte de ter saído do elevador antes da luz acabar.
Ela olhou para o céu e não viu sinal de tempestade. Mas o que ela viu foi a beleza da cidade totalmente escura. Os faróis dos veículos que brilhavam enquanto se movimentavam era uma dança simpática. 
Num movimento automático, entrou na cozinha e apertou o interruptor, mas nada de luz. Riu da sua ação mecânica. Foi pegar algo para comer, mas se deparou com a esquisitice de abrir a geladeira e não acender a tal da luz que está sempre lá. À medida que avançava nas atitudes rotineiras, ora se antecipava lembrando-se da falta de energia elétrica, ora o movimento era tão rápido e inconsciente que se chocava. Como podia estar tão automatizada?
Quando tudo voltaria ao normal? Como ela iria saber que horas a luz chegaria se o telefone sem fio só funciona com energia e o seu celular estava sem crédito? Wi-fi desligado, nada de computador nem internet. Estava isolada. Pensou em falar com a vizinha, mas nem tinham muito contato e achou estranho tocar a campainha. Opa, não tem campainha, teria que bater na porta. 
Eliana notava o quanto as atividades que nos levavam aos relacionamentos humanos tinham sido substituídas pela energia elétrica. Se chocou, de novo.
Poderia fazer o que, à noite, dentro de casa, sem luz? Tomar um banho, mas gelado ia ser difícil, a noite estava fria. 
Lembrou que tinha no fundo da gaveta um radinho de pilha. Nas estações de rádio o único assunto era o apagão no Brasil. Mais da metade do país estava às escuras. As cidades mais movimentadas sofriam com o caos no trânsito e nos transportes públicos, além do comércio. Os comentaristas repetiam as mesmas informações, pois não tinha nada além disso para informar: era um apagão. O motivo, alguma pane em alguma hidrelétrica. Ponto, ‘nada além disso’. A repetição das informações, o resto que se escutava,  era uma tentativa de transformar o caos em afetação popular. Eliana foi notando que quanto mais ouvia as notícias mais ela ficava ansiosa, raivosa, inconformada e agitada. E também começava a sentir medo, querer ter sua família por perto, se esconder atrás do sofá.  Os pensamentos que antes serviam para pensar na surpresa ou na automatização das reações, agora se transformação em emoções exacerbadas e infantis.
Eliana percebeu que estava contaminada por um excesso de palavras sem nenhuma serventia. Poderia passar a noite ali ouvindo teorias e opiniões que não passavam de tentativas de fazer existir o que não existia: algo além daquilo, mais do que o simples apagão. Mas ela  também poderia desligar o rádio e lembrar como acontecia na sua infância quando acabava a luz.
Desligou o rádio. Fuçou numa gaveta e achou uma vela, que usava para fazer pedidos ao anjo da guarda. Pediu permissão ao anjo e acendeu, com um bom e velho palito de fósforo. Estava com fome, comeu um macarrão que esquentou ao modelo convencional de acender o fogão, com o bom e velho palito de fósforo.
Deitou no sofá e deixou a mente voar. Levantou, olhou pela janela, a paisagem agora era mais tranqüila, os carros tinham sumido e a escuridão era reconfortante. Pensou na vida, no nada, em tudo. Teve todo o tempo do mundo. Tinha sono, mas não queria dormir e perder a chance de ficar nessa paz. Não sabia que horas eram, mas também não se importava, pois estava bem.
Cochilou no sofá e acordou com o alarme do celular, era de manhã, hora de acordar. Olhou pela janela, os semáforos já estavam funcionando. Tudo voltou ao normal. Era de manhã e tinha luz.

Simone de Paula - 30/03/2016

foto: Evgen Bavcar


Inspirada em 'Elogio à Sombra', de Junichiro Tanizaki, 'Memória do Brasil', e fotos lindas de Evgen Bavcar, na apresentação de Edson Luiz de Souza no último congresso da appoa, 'A melodia das coisas', e ainda no blecaute acontecido há uns anos no Brasil

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