sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

O amanhã não é o futuro


"Se meu casamento acabar, não terá sido por um outro homem, mas por uma outra mulher."
Era assim que ela pensava, porque tinha sido fiel a tudo e a todos a vida inteira. Era comprometida com o lugar da boa aceitação familiar. E como parte desse papel bem planejado, conheceu o rapaz que aceitaria fazer uma dupla com ela.
Casaram, construíram família. Tudo ia bem, justamente quando essa frase começou a ser usada para lembrá-lo de que era proibido trair. E o marido, que nem pensava em outra mulher, visto que se ocupava em 'vencer no trabalho', se sentia culpado cada vez que uma mulher o interpelava. A esposa lia Nelson Rodrigues e fazia questão de contar para ele como a 'tentação' podia estar onde menos se espera. Ela se sentia segura em demarcar cada passo que ele dava com seu olhar perseguidor. Mas esquecia de observar seus próprios desejos que deslizavam pelo imaginário erótico disponível na literatura. Era Emma Bovary com medo de  ceder. Mas o corpo, cheio de libido, gritou! O coração começou a bater forte, uma onda de calor lhe invadiu o rosto e o peito. Ela precisava sentar para não cair. Com toda prontidão de quem sabe o que fazer com os problemas da vida, marcou a consulta com o clínico geral. Este fez exames e nada constava, mas era melhor procurar um cardiologista. Mais uma série de exames e nada. O cardiologista sugeriu um endocrinologista, poderia ser algo hormonal. Mas não era, e a possibilidade da menopausa precoce a levou ao ginecologista. Não, ainda não era isso, demoraria alguns anos para essa nova condição. Mas a sensibilidade do ginecologista foi maior que a dos outros especialistas e ele sugeriu um analista.
Ela se assustou, como poderia ser levada ao analista por causa de uma taquicardia. Rapidamente se aprumou e fingiu ser uma mulher avançada e bem informada. Topou a sugestão, sem demonstrar que era a contragosto.
A primeira sessão foi estranha, ela não sabia direito como fazer. Ali, ela não tinha experiência. Pensou que deveria ir deitando no divã, mas o analista a orientou a sentar na poltrona e contar porque ela o procurou. Ela contou da taquicardia e da visita aos médicos. Comentava e criticava a cada um deles, definindo o erro de cada um. O analista ouve o relato até o final, levanta-se indicando o momento da despedida, coloca a mão na maçaneta da porta e pergunta:  "E o meu erro, qual foi?" Ela se assusta. Que surpresa! Como poderia ela lhe dizer na cara uma coisa dessas? Como poderia ele ser tão invasivo? Ela diz: "não posso responder", no tom mais baixo em que falou nos últimos 20 anos. Ele se despediu e disse que a veria na próxima semana.
As sessões transcorriam, a taquicardia diminuía, mas os calores, não. Ela se sentia bem em frequentar o analista, mas ainda se sentia invadida com a pergunta que insistia em sua cabeça: 'e meu erro, qual foi? Desde o início do tratamento, usava todo o tempo que tinha tentando limpar sua barra, falando de assuntos que provavam que ela não era tão crítica, que ela confiava nas pessoas, que ela não tinha controle de tudo e, principalmente, que ela respeitava os homens. Falava muito do marido e o quanto ela o admirava por colaborar com ela, especialmente nesse momento da doença. Ela não deixava escapar a palavra que vinha na ponta da sua língua todas as vezes, não soltava a frase: 'ele me obedece', mas sabia disso.
Um dia, atarefada que estava com os preparativos do aniversário da filha, esqueceu de ir à análise. Quando ouviu o relógio da sala badalar, lembrou que aquele som indicava um fim de uma sessão em que ela faltou. Ela errou.
Atormentada com a culpa pela falha, mandou mensagem para o analista, que não respondeu. Na semana seguinte, passou a sessão se justificando. E, uma semana depois, quando ela ia começar a ladainha das desculpas, ele encerrou a sessão com uma observação serena: todo mundo erra.
Ela saiu furiosa, não aguentava mais esse tipo de postura dele. Sentia como uma falta de compostura ele a provocar desse jeito, com esse ar de superioridade.
Chegou na sessão seguinte e foi logo dizendo: seu erro é invadir minha privacidade! O analista sorriu e disse: ótimo, deite-se no divã e vamos começar.
Ela pareceu tirar um dragão do peito. Seguiu falando de coisas que antes ela nem pensava. Não tinha mais preocupações em manter tudo no lugar, muito menos a vida do marido e da filha.
Um dia, chegou e disse que o marido tinha lhe dito que ela não dizia há muito tempo que o casamento, caso acabasse,  seria por causa de outra mulher. E ela se dava conta que o casamento não existia há muitos anos. Que aquela relação estava soterrada, que era preciso fazer algo com isso. Seguiu mais um longo tempo discutindo questões sobre si, sem nem tocar no casamento novamente.
Numa tarde chuvosa ela chega chorando muito. A briga com o marido tinha sido muito violenta, ela não tinha tido forças para convencê-lo a ficar. Não sabia como voltar a ser como antes. E ouviu do analista a frase que representava uma revelação sobre si mesma e a constatação de ter realizado um desejo que existia há tanto tempo dentro dela: "se o seu casamento acabar, não terá sido por um outro homem, mas por uma outra mulher." O choro cessou, ela se levantou e saiu.
Na semana seguinte, chegou diferente, com uma roupa mais leve, um sorriso tranquilo e um pedido legítimo: sou outra mulher e quero um outro homem. Será que meu marido conseguiria assumir esse lugar?

Simone de Paula - 16/02/2016

Inspirado em "Do amor louco e outros amores", de Ricardo Goldenberg e "Palavras por dizer", de Marie Cardinal.

2 comentários:

  1. Uau! Adorei. Me deu vontade de acompanhar as sessões dela, de fazer perguntas, de tomar um café qualquer dia...

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