quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

Aleijadinho


Cheguei em Ouro Preto por volta das seis horas da manhã.
- O sr. poderia me levar na melhor padaria da cidade? Perguntei ao taxista.
Acho que ele segurou o riso para ser gentil.
- Paulista? Se é a melhor eu não sei, mas se ocê quer um trem pra comer aí tem.
Responde generoso diante da minha total falta de sintonia.

A padaria no caso era um lugar que vendia quase tudo, de pé de porco a rosca de coco.
Compota, parafuso, jornal.
Mesa de centro para apoiar o copo, cortina vermelha dando aconchego ao frio da hora. Alguns tomavam sua última pinga, outros a primeira.
Cheiro de pão quentinho e café, o maior respeito aos sentidos.

Tinha uma pressa danada dentro de mim, não saía. Mastigar, andar, fotografar, postar. Vai, vai, vai.
Em pouco tempo, boa parte da cidade estava semi desvendada sem o menor cuidado.

Calma corpo, calma.

Era hora de me perder. Subindo e descendo.
Cheguei na Igreja do Pilar. A com mais ouro disseram.
Eu não entendi e não entendo até hoje, o formigamento que me deu.
Entrei.

Fui tomada por um choro como um vento levando tudo, tirando o que havia do lugar. Remexendo sólidos tijolos, cimentos barrocos, terra firme e roxa.
Caí em reverência. Não a um santo que não conhecia, mas ao sagrado que morava em mim e em um instante se reconheceu.

Era o prenúncio de um encontro.
Dali bem pouco, nos veríamos pela primeira vez.

Se eu pudesse, voltaria agora.
Não exatamente para a igreja, mas para dentro dessa cozinha mineira igual a que fui em Mariana, um maravilhoso templo.
Ouviria atrito de garfo e faca e fumaça.
Me aproximaria do grande fogão construído no meio do salão e bem devagar saberia que era lenha queimando, faísca por faísca, estalo, ardendo, em plena transformação, um estado em outro estado.
Bem esse que era em mim.
O de não ser o mesmo, a mesma. E nunca mais seria.

Depois dormir. Horas.

Respirar profundamente em frente ao santo, um santo barroco, exige maturidade da gente. Descanso.
Era preciso muito para estar diante de Aleijadinho.
Seguir seu rastro, se alinhar na sua costura pela cidade.
Juntando os pedaços.
O corpo, uma vida inteira.

Ele dizia em meus ouvidos:
Cale, silencie e penetre.
Há profetas em volta, são sábias as palavras, apenas escute.

Arrepios.

Foi artista, tido como herói, filho de homem português, mãe escrava, pai, sogro, branco, preto, pardo.
Só se sabe guiado por um anjo e o cálice da paixão.
Abram portas e janelas!
Maduro, a doença avançava. O que era? Ninguém dizia, aos poucos se desmaterializava diante da rigidez de suas pedras.
Ia embora perdendo a vida. Reconhecendo a vida.
Fragmentando-se. Aleijando-se.

Voltarei um dia lá, contigo. Você vai saber o que é um tutu de feijão, couve e São Francisco de Assis. Vou te mostrar meu tempo esculpido. Embora em constante reconstrução. Espero que faça frio para os nossos narizes gelados se tocarem e se reconhecerem.
E nossos corpos saberem-se quentes, amanteigados.

A gente se lembra do seu sonho, de que íamos para montanha. Estamos em frente a montanha.
Sei muito pouco, mas estou acordada.

Nada mais inteiro, que um amor quando abraça o outro.

Maria Laura, 25 de fevereiro de 2016.



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