terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Sem retoques.


Todos os dias a cena era exatamente a mesma: ela levantava, caminhava até a cozinha, preparava seu café e depois se vestia para mais um dia. Saia de casa com uma determinação visível em seu corpo, como se estivesse a caminho de algo que exigiria grande esforço.

Quando chegava à entrada do teatro, sempre parava e lhe lançava um olhar. Olhar de reconhecimento do espaço e de si. Todos os dias chegava precisamente no mesmo horário, sentava rigorosamente na mesma poltrona do lado esquerdo, mais ao fundo e conferia o relógio. E, logo, ficava irritada com qualquer atraso.

O ensaio começava e ela fazia parte de todo aquele cenário. Era a menina que religiosamente assistia aos ensaios e depois simplesmente ia embora. Como se cumprisse uma missão. Oficialmente, não fazia parte de tudo aquilo, não fazia parte da orquestra, apesar de todos ali a reconhecerem. Nunca tinham trocado nenhum palavra. A única relação que se estabelecia era o olhar.

Quando o ensaio começava, ela nem piscava, não desgrudava os olhos dos músicos e nada passava do seu crivo. Por fim, o pensamento claro de que se fosse ela no palco, nada precisaria de retoques. Levantava e voltava para casa com a certeza da sua perfeição. Perfeição sustentada em seu corpo imóvel na poltrona, sem qualquer risco de fracassar. Todos os dias, sentada na pláteia, ela era a violinista irretocável, a obra prima por essência.

Carla 19/01/2916

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