sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

O aniversário de Virgínia

Viirgínia estava completando 52 anos naquele dia. Acordou e seguiu sua rotina normal. Chegou ao trabalho e ganhou algumas saudações carinhosas dos colegas. Recebeu alguns telefonemas de familiares e amigos ainda na parte da manhã. No email tinham cartões padronizados das lojas nas quais fez cadastro alguma vez na vida. Estava feliz. Sentia-se parte daquele mundo em que vivia.
Almoçou com os colegas e ganhou a sobremesa pela data especial. Tudo correu bem.
Passou o dia pensando se iria comemorar no final de semana com uma festinha em casa. Ao mesmo tempo sentia o coração aquecido, pois essa situação lhe trazia a impressão de ser querida.
Chegou em casa, tomou um banho mais caprichado e sentou confortavelmente no sofá, enquanto esperava a comida que chegaria em alguns minutos.
Todo o burburinho do dia a impediu de voltar a pensar em si como vinha pensando na última década. Sabia que tinha envelhecido, que não era mais a mesma. Havia deixado de fazer muitas coisas que tinha imaginado que seria, parte da sua história, que o tempo tinha passado. Foi interrompida pelo toque da mensagem do celular. Alguém lhe escrevia mais um recado de felicitações e quando leu, percebeu algo que nunca tinha notado, seu próprio nome. Ler as letras V i r g í n i a coladas uma na outra, pronunciar tudo emendado, nunca tinha revelado para ela o sentido que ela acabara de ver: ela era virgínia, virgin, virgem. Sim, era a verdade mais absoluta que poderia existir, era virgem da própria vida.
Virgínia era sozinha. Filha única, bem cuidada e muito educada. Estudou como era esperado. Teve as amigas que fizeram parte da sua vida, aquelas com quem estudou e trabalhou. Sempre atenciosa com os familiares e muito cuidadosa com os pais. Namorou pouco. Teve seu primeiro namoro sério aos 21 anos. Ficou com Everton até os 29. Noivos, prestes a casar. Mas ele desistiu porque pretendia seguir carreira de diplomata.
Atônita, era assim que se sentia.
Começou a se lembrar que as pessoas à sua volta cometeram atos impulsivos, rebeldes ou inconseqüentes. Ela não.
Forçou um pouco mais a memória e foi atrás dos piores, daqueles que foram vândalos, ilícitos, proibidos.
Ela nem conseguia se lembrar se alguma vez teve vontade de fazer alguma transgressão, pois se tivesse pensado, desejado, já teria valido a pena.
Era virgem, completamente, e não tinha ideia por onde procurar o que seria o gatilho da mudança.
Desde a morte dos pais, parecia que ela estava esperando a sua própria morte para reencontra-los, pois seguia a rotina e os pensamentos vigiados como se estivessem ainda morando juntos.
Começou tentando fazer uma bagunça, mudou os móveis do lugar. Com o esforço, ficou com os cabelos meio desgrenhados e assim permaneceu, queria muito que o entregador de comida chegasse e a visse assim, descabelada.  Subiu no seu quarto e puxou os lençóis. Riu por serem atitudes tão infantis e ingênuas. Mas estava excitada com a possibilidade de fazer 'bobagens'.
Se isso era infantil, o que seria adolescente? Pensou ela. Com um olhar satisfeito, começou a falar palavrões, todos que lembrava, mas sabia que era tudo muito suave, palavras que se ouvia na tv, nas novelas, mas para ela, era algo bem forte.
Tocou a campainha e ela se ajeitou um pouco para atender o entregador. Um ato automático, mas que era próprio dela demais para ela deixar de fazê-lo.
Quando abriu, deu de cara com o Zeca, antigo colega de bairro, que vinha no lugar do entregador. Ela estranhou e ao mesmo tempo reconheceu o colega. Perguntou educadamente da vida e da família, da mulher e dos filhos, e ele respondeu sem muita animação. Ela olhou com carinho para ele e ele se sentiu querido por ela.
Ela então teve a ideia de continuar se desvirginando. Convidou Zeca oara dividir com ela a comida, pois era seu aniversário e ela estava sozinha. Aliás, disse que esteve sozinha a vida toda. Ele aceitou. Estava também com 52 anos. E sua vida era bem decadente: entregador de comida para pagar a pensão de 3 filhos.
Entrou, comeram, relembraram o passado e a noite terminou assim. Ele saiu, agradeceu a gentileza e foi embora. Ela entendeu que as coisas não poderiam ser tão rápidas, pois ela queria mudar tudo, mas o que era tudo? Mudar de quê para quê? Eram mais perguntas do que respostas. Ela tinha feito 52 anos e descobriu numa fração de segundos que as certezas que ela tinha de mais de meio século de vida tinham se tornado dúvidas que duravam uma eternidade. Melhor, que eram dúvidas da humanidade. E que, diante da falta de resposta para elas, inventaria um jeito de viver novo. Foi o que ela fez, escolhia algum tipo de mudança quando percebia que era o jeito antigo de agir, ou pensar, ou mesmo sentir. Dizia assim: quando entendo o 'o quê' e posso saber para quê mudar.
Em um ano ela tinha viajado 3 vezes. Gastado parte do dinheiro deixado pelos pais com uma pequena reforma na casa, que agora tinha mais a sua cara. E tinha aceitado mais convites para tomar a tal 'cerveja no bar' com as conhecidas.
Na manhã do aniversário de 53 acordou mais tarde. Estava na praia e tinha tirado a semana de folga no trabalho, pois estava comemorando o primeiro ano de sua vida. Com o raiar do sol, raiou também mais um desejo, dessa vez o de andar de lancha e deixar que o vento fresco e a água salgada lhe abençoassem.  Queria agora ser batizada.

Simone de Paula - 13/1/2016

Conto inspirado no livro 'Memórias de minhas putas tristes', de Gabriel Garcia Marquez

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