sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

Calores, vapores



O sol nascia no horizonte e se levantava, revelando cenas na penumbra, e sombras na rotina.
A gente seguia o ritmo lento do dia-a-dia, esperando o fim que chegaria.
Cidade pequena é assim: tudo acontece, todos se conhecem, nada muda.
João trabalhava na ferrovia. Fazia de tudo um pouco e quando o trem estacionava, era a vez dele se espertar, correr, preparar tudo para a nova partida. Tinha o trem que tinha rodado a noite toda, chegava e ficava parado até o meio da manhã. Tinha o expresso do meio-dia, que parava só pra descida do pessoal que vinha resolver negócios na cidade. E tinha o trem do fim da tarde, que ficava parado durante uma hora na estação. Quem tinha chegado ali descia e quem ia seguir com o trem subia. Mas, era o trem novo, moderno, que chamava atenção. A criançada, que já tinha saído da escola, entrava e corria pelos vagões, fazendo uma baita algazarra. João gostava, ria, queria correr junto com eles. Mas, quando via o chefe da estação, saía dando bronca nos meninos e fiscalizando o trem, para ver se estava em ordem para a nova saída. Sim, ali ainda o mundo estava no século passado.
Ercília era a moça que tinha uma banquinha de doces na estação. Vendia bolo, cocada e geléia caseira. Sabia que os passageiros que vinham pela manhã compravam o bolo e esperavam encontrar um gole de café fresco da banca da Ivone. O pessoal do meio dia, mal olhava os doces, passava voando e quando muito, pegavam um doce na volta, para matar a fome de quem nem teve tempo de almoçar. Mas, quem passava no final da tarde, geralmente levava um pacote com alguns agrados para aqueles que iriam encontrar no destino final.
Ercília saía da estação logo depois que o trem das 18 horas partia. Passava na mercearia, comprava algum ingrediente e seguia para sua casa para fazer os doces do dia seguinte. Ligava todas as bocas do fogão e o forno. Batia o bolo na mão, tinha braços fortes e rosto vermelho de tanta energia que colocava no batedor para o bolo ficar bem fofinho. Bolo no forno, era hora da cocada, que não podia parar de mexer até dar o ponto. E a geléia era fácil, era só deixar as frutas com açúcar no fogo bem baixinho, até derreter tudo. Ela adorava essa rotina, sentia o perfume açucarado pela casa e isso lhe fazia companhia. Os vizinhos, quando sentiam o cheiro forte dos quitutes, gritavam comentários elogiosos e ela ficava toda satisfeita.
João saía da estação depois das sete da noite. Ia pra casa, tomava banho e tomava a sopa que a mãe tinha preparado. Era jovem, solteiro, mas pensava em casar. Saía toda noite para passear pelas ruas da cidade, gostava dos pequenos sons rompendo o silêncio: o latido dos cães, as conversas ouvidas nas janelas das casas por onde passava.
João e Ercília tinham muito em comum, trabalhavam na estação de trem, eram jovens, solteiros, acreditavam na vida e em deus. Mas algo que era muito particular deles era a mania de coletar caquinhos de voz. Ela com o que ouvia de dentro de casa, sobre o que o cheiro dos seus doces provocavam na vizinhança. Ele com o que ouvia das histórias das famílias daquela vila, os segredos, as brigas, os amores, as despedidas.
Os dois se encontravam diariamente, se cumprimentavam e ele, vez ou outra, comprava um pedaço de bolo depois do almoço ou um pote de geléia para levar para a mãe. Mas ela tinha muita vontade de conhecer o trem novo, andar pelos vagões enquanto ele estava parado na estação. Mas não podia deixar sua banca de doces, principalmente porque era a hora de maior movimento. Então, toda vez que João ia comprar um doce, Ercília perguntava como era o trem por dentro. E João contava. Descrevia o vagão de passageiros, o restaurante, o de carga. Da outra vez, falava as mesmas coisas, mas Ercília, na sua imaginação alimentada pelas altas doses de odor açucarado, queria saber mais. João resolveu contar a ela o que ouvia pela cidade, como se fossem fragmentos de conversa s de passageiros que embarcavam no trem.  Ercília se deliciava com as histórias e João podia contar o que tinha ouvido para alguém e dividir aquilo que muitas vezes o tinha surpreendido, encantado ou horrorizado.
A conversa acontecia no intervalo entre os trens. Os dois, ociosos, papeavam divertidamente. Ercília presenteava João todo dia com um doce e ele lhe trazia mais histórias.
Mas João se afeiçoou à moça e achou que ela poderia se sentir enganada se soubesse que eram histórias da vizinhança e não dos passageiros. Tolo, achou que se ele fosse sincero iria ter dela mais carinho e atenção. 
João era tagarela, falava o tempo todo, e contou para o chefe o que estava acontecendo. E, como o chefe era casado e conhecia mais as mulheres, poderia dizer-lhe se era acertado contar à Ercília sobre as histórias inventadas. O chefe gostava muito de João e achava que estava na hora dele namorar. Combinou que João deveria convidar Ercília para conhecer o trem, que seria melhor. Mas não sabia como fariam com a banca de doce. O chefe, gostando de bancar cupido, pediu à esposa que substituísse a moça por uma tarde. Pronto, combinação feita, tudo certo, João convida Ercília e ela, toda animada, aceita.
É um momento solene para ela, que se arrumou melhor e passou batom e perfume para entrar no trem. Olhava encantada e perguntava a ele qual história tinha acontecido onde. Riram muito. E João, inspirado pelo ambiente, contava mais e mais histórias. Sentaram nas poltronas e ali ficaram sem notar que o trem tinha partido e os dois foram naquele passeio, com o destino  definido, mas sem saber onde aquele caminho os levaria.
A noite passou, dormiram e quando acordaram estavam numa cidade grande, sozinhos, sem bem saber o que fazer. Mas um tinha o outro e João entendia muito das escalas de trens. Ele se informou sobre o trem de volta, que sairia de lá só no final da tarde. Tinham 12 horas para passear por uma cidade estranha, ver gente nova, observar tudo que era diferente. João ia mostrando para ela como era bom ouvir os caquinhos de voz, pedaços de conversas, como ele fazia na cidade deles. Ela ficou fascinada.
Na volta estavam exultantes, queriam contar aquilo para alguém. Pegaram o trem de volta sem problemas, afinal, ele era um empregado da companhia ferroviária. Mas chegaram e perceberam que não tinham com quem compartilhar. O chefe achou engraçada a aventura, mas não queria saber o que João tinha visto. Ivone, a amiga do café, estava mais preocupada com a unha lascada pelo fecho da saia do que para tudo que Ercília tinha vivido. Perceberam que tinham mais uma coisa em comum, o desejo de compartilhar histórias, emoções, de inspirar um ao outro. Sabiam que aquela amizade duraria muito tempo, talvez a vida toda e resolveram fazer uma brincadeira, ela contou a ele o que ela tinha vivido e ele a ela e perceberam que mesmo juntos, os dois viam as coisas de um jeito diferente, particular. Descobriram que ainda que estivessem juntos, vivendo as mesmas coisas, ainda assim poderiam contar um ao outro uma versão diferente.
É claro que tamanho apaixonamento pela vida provocou um estado amoroso de um pelo outro e essa dupla se tornou conhecida por todos na cidade como o casal dos contos de fadas.

Simone de Paula - 27/1/16

Inspirado no romantismo dos antigos contos destinados às "mulheres".

Obs.: o título promete e não cumpre... uma hora sai o conto condizente com Calores, vapores, tesão!

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