sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

A tempestade

A tempestade se aproximava avassaladora. Rajadas de vento sopravam com toda força sacudindo árvores, estremecendo janelas, agitando seu coração.
O estrondo dos trovões e o brilho intenso dos relâmpagos a fizeram fechar as cortinas, num impulso automático de se proteger daquela ameaça da natureza.
No entanto, quanto menos ela enxergava, mais ela se agitava. Parecia que algo a tomaria, engoliria, destruindo seu corpo frágil e sua alma delicada.
Durante toda a sua infância, viveu naquele castelo imenso, sozinha, sem crianças, sem adultos. Apenas serviçais a proviam nas suas necessidades. E, com o passar do tempo, ela os dispensou, um a um, buscando declarar a solidão em que sempre esteve.
Herdou o castelo, mas não herdou os habitantes do castelo. Perguntava-se por que um lugar tão grande para ninguém viver ali. Ela também era ninguém.
‘Cabrum!’, um sobressalto num estrondo mais forte a tira de um devaneio. Imaginava hordas de pessoas adentrando e tomando o castelo. Vivia um misto de medo e desejo de perder toda aquela proteção, queria que aqueles muros viessem abaixo e que ela pudesse realmente ver além, além das janelas, do jardim, dos portões.  Queria ver tão além que se mantinha sempre no andar mais alto do castelo, confinada no cubículo que servira como quarto do castigo.
Ela gostava de ficar ali porque sentia que preenchia o lugar. O espaço pequeno era bastante adequado à pessoa que ela era: pouca superfície e pouco recheio.  Um corpo pequeno com poucas histórias, poucas ideias. Gostaria de saber o que tinha sido esse quarto pequeno no topo da torre. Fez muitas pergunta a todos com quem conviveu, mas ninguém lhe respondeu. Fuçou nas gavetas e baús, achou muitas informações, mas nada sobre aquele espaço, o lugar que ela escolheu para habitar, seu canto. Como poderia saber de si se não sabia do lugar que assumiu como seu?
‘Crash!’, mais um estrondo, agora tão forte que ela jurava ter balançado a torre, será que ela cairia de lá, será que o vendo seria tão forte a ponto de derrubá-la do seu cantinho?
Já tinha inventado várias associações para sua condição: uma gaiola com um passarinho sem asas, um aquário com um peixe solitário, uma galinha botando ovos. Achava curioso só conseguir pensar em animais, por que ela não se achava parecida com gente?
Desde cedo foi ensinada. Sabia ler, escrever, tocar, pintar e bordar. Sabia também como se comportar com elegância à mesa de jantar, como dançar uma valsa e também como portar um belo vestido. Tudo isso fora ensinado por diversos professores, que vinham, ensinavam e iam embora. Certa vez se afeiçoou a um professor muito sério. Ele a ensinou a tocar flauta. Enquanto ele falava ou mostrava como ela deveria segurar ou manusear o instrumento, ela observava seus gestos, o brilho dos seus olhos, tinha certeza que tinha uma personalidade muito mais ousada do que aquilo que ele mostrava. Passava os dias nas aulas e as noites sonhando, supondo quem era aquele homem misterioso que se expressava através das peças de Mozart.
Sem aviso, um belo dia, apareceu uma professora de piano em substituição ao belo senhor da flauta. Foi bem decepcionante, o piano nunca foi seu principal instrumento. Como era teimosa aquela mulher exigente, que vivia a respirar fundo quando se errava uma nota.
Pensando bem, aquele ar todo que passava pela flauta, que produzia aquela beleza de som, a levava muito longe, além daqueles muros. O coração do pássaro voava alto e se inundava de paixão e desejo.
Ela foi crescendo. Como já sabia tudo que precisava, os professores foram sumindo. Sempre se perguntou quando usaria tudo que aprendeu. Afinal estava isolada, sozinha, com quem dançaria uma valsa? Para quem tocaria Mozart?
Sabia que algo não estava certo, mas não imaginava o que poderia estar errado.Tempestade forte. Muita água caía do céu, escorria pelos vidros, devia fazer grandes poças no jardim.
Pensou no professor de flauta, aquele homem misterioso. Relembrou sua certeza de que ele era ousado. Tudo isso provocou naquela alma frágil um desejo de fazer algo inusitado, inesperado. O que ela poderia fazer? Já estava saltitando pelo pequeno dormitório e o corpo se agitava cada vez mais. Tomada pela falta de ar que já começava a sentir abriu as cortinas num gesto brusco e veloz. Olhou a água escorrendo pelo vidro. Viu a si mesma se misturando com aquela imagem. Pareceu sentir aquela água escorrendo pelas suas mãos, pelos braços. Precisava de ar, queria respirar, produzir um som como o da flauta.
Abriu a janela, sentiu o vento, a chuva, tudo inundou seu rosto e aquele pequeno cubículo. Olhou em volta, a imagem daquela tempestade mudou, o tormento da ameaça se transformou num convite a um baile cheio de vida, de som, de luz. Aquele quarto realmente ficou pequeno demais, não para o corpo ou para as ideias, mas para o desejo. Ela queria, precisava ir lá fora, sentir o corpo todo envolvido pela presença daquele presente, daquele céu e terra.
Tudo era tão urgente que ela tinha apenas dois caminhos, ou pular da janela ou descer desesperadamente o monte de degraus que a distanciava da realização daquele desejo enorme. Tinha pressa, o corpo gritava. Ele estava tão vivo que precisava se mover, o salto pela janela impediria o corpo de participar ativamente dessa louca aventura, ela opta por descer, correr em direção ao lado de fora.
O corpo se move, numa corrida desenfreada. A alma se entorpece e ela se deleita com tanta emoção. Ela chega em frente a porta que dá acesso ao jardim, ao mundo. Sem pensar,abre e sai, para e deixa que tudo aquilo continue sem tempo, sem juízo, sem medo.
Ela não poderia dizer quanto tempo durou esse estado de prazer, mas certamente foi o bastante para mudar de vez aquela existência. Deixou pra trás aquele alguém que esperava uma história para ser. Assumiu seu caminho, sozinha, em direção ao além.

Costumava contar que nasceu num dia lindo, durante uma tempestade amedrontadora. Misturava histórias do passado e do presente criando uma nova linha do tempo para sua existência. Inventava as mais divertidas situações para aquele quartinho em que viveu. Criou uma árvore genealógica, decidindo quem eram seus antepassados. Confirmava tudo com as informações tiradas dos baús, das gavetas e de todos os livros lidos e canções aprendida, além das fantasias anímicas que fizeram parte da sua solidão. Fora daquele castelo, percebeu a riqueza que existia lá dentro, mas que era impossível de ser compartilhada quando não havia liberdade e nem um outro que queria saber.

Simone de Paula - 28/1/2015


Conto inspirado nos concertos de Brahms e Liszt e nessa pintura que não sei de quem é.

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